Enquanto todo o aparato de espionagem dos Estados Unidos trabalha para impedir que potências estrangeiras interfiram com as eleições, Donald Trump parece ter tentado interferir no curso normal da campanha do seu próprio país, pedindo a um presidente estrangeiro que investigasse o seu principal adversário político interno: Joe Biden. E a Casa Branca quis esconder o telefonema num sistema de encriptação só utilizado para ocultar informação que pode prejudicar a segurança naiconal - e nunca para lapsos políticos.
Já é conhecido, na íntegra, o relato que a pessoa que denunciou as suspeitas de pressão enviou para o presidente do Comité do Senado para os Serviços de Informações e para o presidente do mesmo comité mas na Câmara dos Representantes e essa pessoa acusa o Presidente dos Estados Unidos de colocar em causa a segurança nacional e de “minar os esforços já demonstrados pelos Estados Unidos em combater e diminuir a possibilidade de interferência de poderes estrangeiros nas eleições de 2020”.
A denúncia não é leitura leve para Trump. Começa com uma declaração da gravidade que, no entender da fonte, pesa sobre o assunto. “Estou profundamente preocupado com as ações descritas abaixo porque constituem ‘um sério ou flagrante abuso do poder’ e uma ‘violação da lei ou ordem executiva’ (...). Estou também preocupado que estas ações representam riscos para a segurança nacional e possam pôr em causa os esforços já encetados pelo Governo dos Estados Unidos para dissuadir e combater a interferência estrangeira nas eleições.” Só depois se passa para o relato do dito telefonema (já transcrito na íntegra e traduzido pelo Expresso), no qual, alegadamente, Donald Trump terá pedido favores ao presidente ucraniano, Volodymyr Zelenskyy.
“Vários funcionários da Casa Branca com conhecimento direto da chamada informaram-me que, depois de uma primeira troca de amabilidades, o presidente usou o restante da chamada para fazer avançar os seus interesses pessoais. Procurou pressionar o líder ucraniano a tomar medidas para o ajudar a garantir a presidência em 2020.” E que pediu Trump a Zelenskyy? As várias “exigências” aparecem separadas por ponto e vírgula: “Iniciar ou continuar uma investigação às atividades do ex-vice-presidente Joseph Biden e do seu filho, Hunter Biden; ajudar a descobrir se as alegações de interferência russa nas eleições presidenciais dos EUA de 2016 tiveram origem na Ucrânia, com um pedido específico para que o líder ucraniano localizasse e entregasse os servidores usados pelo Comité Nacional Democrata (DNC) e examinado pela empresa de segurança cibernética dos EUA Crowdstrike, que inicialmente informou que hackers russos haviam penetrado nas redes do DNC em 2016; e conhecer ou falar com duas pessoas que o Presidente nomeou explicitamente como seus enviados pessoais sobre esses assuntos, [Rudy] Giuliani e o procurador-geral [William] Barr, a quem o Presidente se referiu várias vezes em conjunto”.
No total, lê-se ainda na nota do denunciante, cerca de 12 pessoas ouviram este telefonema.
Casa Branca tenta bloquear transcrição
Segundo o denunciante, nos dias seguintes à ligação “funcionários sénior da Casa Branca intervieram para bloquear todos os registos da ligação, principalmente a transcrição oficial palavra por palavra da chamada”. A Casa Branca divulgou um memorando da ligação, mas não uma transcrição literal, na quarta-feira. Os advogados da Casa Branca, segundo se lê na denúncia, orientaram as autoridades responsáveis pela gestão e armazenamento de informação para que removessem a transcrição do sistema. “A transcrição passou então a ser armazenada num sistema separado que é usado para guardar informações de natureza especialmente sensível.” Ações como esta, continua o denunciante, “tornam claro que os funcionários da Casa Branca entenderam a gravidade do que havia acontecido na ligação."
“De acordo com os funcionários da Casa Branca com quem conversei, esta não foi a primeira vez ‘sob esta administração’ que uma transcrição presidencial foi colocada nesse sistema de encriptação apenas com o objetivo de proteger informações politicamente sensíveis - em vez de sensíveis à segurança nacional.”
“Padrões consistentes”
A identidade do denunciante não é conhecida mas, a avaliar pelo que escreve, é alguém próximo da comunidade de serviços de informações porque terá tido acesso a este material por contactar com pessoal da Casa Branca em encontros de rotina. “No decurso das minhas funções oficiais tenho recebido informação de múltiplas fontes oficiais dentro do Governo que mostram que o presidente dos Estados Unidos está a utilizar o seu poder para solicitar interferência de um país estrangeiro nas eleições de 2020.”
Esta interferência inclui, entre outras coisas, pressão sobre o governo de um país para que investigue um dos principais adversários internos do Presidente. O advogado pessoal do Presidente, Rudolph Giuliani, é uma figura central neste caso, e o procurador-geral [William] Barr parece estar envolvido também. O relato que faz dos factos aparenta também basear-se em mais do que uma fonte. “Nos últimos quatro meses, mais de meia dúzia de funcionários da Administração informaram-me de vários factos relacionados com esta demanda. As informações aqui contidas foram-me transmitidas no decurso de reuniões oficiais interagências. Apesar de não ter sido testemunha direta da maioria dos assuntos aqui descritos, creio que as histórias dos meus colegas são totalmente credíveis porque, em quase todos os casos, vários funcionários me contaram factos semelhantes que formam padrões que se foram revelando consistentes.”
Ex-procurador diz que filho de Biden não tem culpa de nada
Entretanto, o próprio ex-procurador-geral ucraniano (no cargo até agosto de 2019) que primeiramente levantou suspeitas sobre o filho de Joe Biden já disse ao “Washington Post” que não acredita que Hunter Biden tenha cometido qualquer crime. ”Do ponto de vista da legislação ucraniana, ele não violou nada'", disse Yuri Lutsenko. Enquanto vice-presidente, Joe Biden pressionou a Ucrânia a demitir o antecessor de Lutsenko, Viktor Shokin, que Biden e outras autoridades ocidentais disseram não ser suficientemente duro com casos de corrupção. “Hunter Biden não pode ser responsabilizado por violações da administração do Burisma que ocorreu dois anos antes de sua chegada”, disse Lutsenko, referindo-se à empresa investigada por corrupção onde o filho de Biden chegou a trabalhar. Trump sugere na chamada que o antigo procurador era “muito bom” e que não entende a razão para o seu afastamento.