Internacional

Mais de um milhão nas ruas de Londres disseram “Não” ao Brexit

Enorme manifestação de sábado apelou à realização de um segundo referendo sobre a saída do Reino Unido da União Europeia. “Estamos aqui porque nos mentiram. Precisamos de um segundo voto”

Ana França, enviada a Londres

Passava pouco das nove da manhã e já Lucy Jones, enfermeira reformada de 70 anos, estava a entregar panfletos de mobilização para a People’s March à porta da estação de Russel Square. Muito baixinha e magra, cabelo branco apanhado num totó de bailarina, ninguém podia preparar os passageiros para o vozeirão de Lucy: "Juntem-se à Marcha! É a coisa mais importante que vão fazer na vossa vida. Vamos parar esta loucura!”, ia berrando, qual pregão de feirante, à porta da estação.

Está em campanha "desde que soube o resultado" porque tem a certeza que “ninguém sabia no que estava a votar". O marido votou no Brexit mas mudou de ideias. “Somos ambos pessoas com cursos superiores e mesmo assim fomos enganados. O acordo que existe agora não é algo que consiga descansar nem ‘brexiters’ nem ‘remainers’ porque é um péssimo e perigoso acordo mas devíamos levá-lo a votos e logo se via qual era o veredicto”, diz Lucy. A família não é de Londres, é de Plymouth, no sul de Inglaterra, e quando dizemos que somos de Portugal Lucy diz que a assistência prestada pelos nossos enfermeiros é “absolutamente imprescindível” no distrito onde ela vive.

Seguimos pela linha de metro Piccadilly com destino a Hyde Park Corner. É ali, no coração de Londres, e a cerca dois quilómetros do centro de todas as decisões que tantos contestam, que horas mais tarde iam estar reunidos os que desejam um fim diferente para estes anos de esquizofrenia política. George Parker está com o filho, John, um bebé. Dorme nos braços do pai envolto num cobertor com estrelas amarelas. “Ele não se vai lembrar disto mas eu vou contar como o pai ao menos tentou fazer barulho.” Saem logo na paragem a seguir, vão buscar a mãe que esteve a trabalhar de noite no hospital e seguir para a marcha.

Está um ambiente meio tenso na carruagem, mas não é uma tensão de quem espera uma coisa má. É assim como quem está a caminho de ver, pela primeira vez, a sua banda preferida com o primeiro amor da adolescência. Toda a gente olha para os pins, chapéus, lenços, cartazes alheios e está toda a gente a sorrir para toda a gente sem dizer nada. Educação nunca faltou no ‘underground’ mas este nível de simpatia numa manhã fria de sábado não é dado adquirido.

Pessoas mais informadas num país dividido

Às 11 da manhã já não se conseguia circular em Hyde Park Corner. Uma pessoa emerge da escuridão do metro e é engolida por uma multidão amarela e azul berrante, que se mexe toda ao mesmo tempo em direção a Piccadilly, a mais nobre artéria do centro de Londres. Mas o início da marcha ainda está aqui, no local marcado para o ponto de encontro. “É assim que vê a quantidade de pessoas que vamos ter. Nem nos conseguimos mexer”, diz Michaela Hart, professora de Geografia de 38 anos. “Eu vim a todas, têm sido cada vez maiores. Na primeira, em 2016, eram talvez 100 mil pessoas e nós já achámos incrível mas isto é de outro mundo.”

Ainda assim, não acredita que os gritos destas pessoas consigam penetrar as paredes de pedra de Westminster. “A BBC nem sequer fez uma história para o jornal da noite da outra marcha antes desta, onde estiveram mais de 500 mil pessoas, há seis meses. Quem está hoje no Governo não está a ouvir as pessoas.” Traz uma cabeleira azul brilhante e uma bandeira enorme da União Europeia presa ao cinto. Ao lado dela está um grupo de cinco amigos, todos com berets tipicamente franceses, azul intenso, apetrechados com as estrelas amarelas da UE. “Todos estudámos na European School em Bruxelas, crescemos juntos ao lado de pessoas de todas as nacionalidades do mundo - e não me conformo que queiram vedar isso às gerações futuras.” E o que é que o Reino Unido tem a perder por sair? “Bom, aqui acho que toda a gente vai responder: o que é que tem a ganhar? Mas a lista das coisas que perderíamos é infinita: a possibilidade de trabalhar, viajar, estudar com toda a facilidade do mundo em 27 outros países; perdemos ou podemos perder as nossas leis de proteção ambiental.”

A percepção geral é que as pessoas estão mais informadas agora sobre aquilo que pode acontecer num cenário de saída sem acordo do que quando depositaram o voto mas Michaela tem outra opinião: “O país parece-me cada vez mais dividido. Eu espero estar errada, espero mesmo que tenhamos esta oportunidade e que toda a gente, então, aceite o resultado.”

Emma Evans concorda que o país está dividido mas é este voto, na opinião desta estudante de 17 anos, que vai voltar a sanar as relações entre ‘leavers’ e ‘remainers’. Isso não é muito otimista? “Eu acho que se houvesse um segundo referendo e as pessoas decidissem apoiar o acordo de May, ou mesmo voltar a votar para sair sem qualquer acordo, quaisquer que fossem as opções, isso traria alguma paz ao país porque ao menos seria um voto com os factos todos em cima da mesa - ou os possíveis porque mesmo lendo o acordo ainda há imensas coisas que não sabemos se vão ou não resultar”, diz Emma que vai seguir Ciência Política quando, para o ano, concorrer à universidade.

“Estamos aqui porque nos mentiram, ambos os lados nos mentiram e por isso precisamos de um segundo voto. Os factos que temos agora são diferentes. Não há milhões para a saúde, nem para a pesca, nem para as escolas, é preciso que possamos votar nos factos que não tínhamos ou então isto é só uma imposição, uma imposição não é democracia”, diz Florence Sheppard, que está aqui com Emma e com Tilly Harris. Vieram as três de Chester, quase três horas de comboio até Londres. Tilly tem estrelas amarelas coladas na bochecha e diz que “a marcha é incrível, incrível, incrível” e que “sempre dá alguma esperança” num futuro “com mais envolvimento cívico”.

“Isto é pior que o final da série Sopranos”

As amigas de Emma não vão poder votar se a tal segunda consulta acontecer este ano porque acabaram de fazer 17 mas Emma vai porque está quase a fazer 18. “Quero muito ter uma palavra a dizer porque muitas pessoas com a mesma opinião que eu, mas mais velhos, que já poderiam ter votado, não votaram porque nunca lhes passou pela cabeça que isto acontecesse. Tenho a certeza que se houvesse outra consulta, a participação seria esmagadora.”

“Isto é pior do que o final da série Sopranos." Não queremos estragar o final de uma das melhores séries de sempre para quem está a ler este texto e por isso vamos apenas descrever essa mítica cena final como “enigmática”. Tom O'riordan traz um cartaz com essa frase. Esteve muito tempo irritado com o final dos Sopranos mas nada que se compare ao que sente em relação ao possível desfecho desta “série surrealista em que todo o processo do Brexit se tornou”. Nos filmes, nas séries de televisão, a desilusão, a incerteza, o suspense, a angústia, são sensações motivadas por cenas de ficção. Com o Brexit é tudo muito real, “demasiado real”. “O problema é que, lá está, não sabemos o final."

Ele e a mulher abriram uma empresa de recrutamento e estão mais preocupados com as novas leis que possam vir a afetar a entrada de pessoas do que com qualquer outra ramificação imprevisível do Brexit. "Se daqui a duas semanas as empresas começarem a encolher o número de pessoas que contrataram, ou, por outro lado, nós tivermos mais dificuldade em encontrar pessoas para certas posições porque as pessoas deixaram de conseguir entrar com tanta facilidade então vamos ter um problema”.

À medida que mais e mais gente se ia juntando à marcha, começavam a chegar notícias do Norte, onde Nigel Farage e os seus apoiantes se reuniram para mostrar que o Brexit é para ir para a frente - e para atirar uns quantos “traidores!” aos políticos que, em Londres, parecem recusar-se a dar corpo à decisão tomada nas urnas pela maioria da população. Mas a marcha de Farage foi bem menos impressionante: as cerca de 200 pessoas que estão a fazer a “Caminhada pela Saída” até Londres cabiam, ordeiramente, no passeio da estrada nacional por onde seguiam. Tom O'riordan chama-nos a atenção para um sinal que diz “Hey, Farage, uma marcha é isto!” e acrescenta que já viu mais gente numa fila para cerveja numa cidade só de muçulmanos do que nos eventos do “brexiter” Farage.

“Sou muito, muito europeia”

Maureen Flather está a fazer uma pausa para uma sandes numa das ruas mais calmas, mas vai já voltar a juntar-se aos seus europeístas. “Estou aqui porque sou europeia, somos todos europeus. Ensinei durante 37 anos o Alemão e o Francês, e recuso-me a abandonar o meu país, que é a Europa”, diz Maureen que veste um lenço cheio de estrelas amarelas, uma camisola amarela com o símbolo da marcha e ténis azuis. Tem 65 anos, mas continua “zangada, tão, tão zangada”. A primeira coisa que fez depois de conhecer o resultado do referendo foi escrever a Angela Merkel, em alemão. “Este voto não foi um voto informado e nós não queremos sair, nem todos queremos sair, muitos de nós sentem-se muito europeus, por favor tenha isso em consideração, senhora Merkel.”

A meio do caminho começam a chegar os primeiros números. A marcha ultrapassou o milhão. Há berros, apitos, batuques, colunas montadas perto de Trafalgar Square vão repetindo os discursos de alguns dos políticos que deram o nome por esta campanha.

A primeira-ministra escocesa era uma das vozes mais esperadas. O seu repúdio ao Brexit é bastante óbvio nas suas intervenções públicas e esta não foi excepção. “Este é o momento em que as nossas oportunidades de mudar alguma coisa estão no ponto máximo - precisamos evitar tanto a catástrofe do não-acordo como os danos que seriam causados pelo mau acordo da primeira-ministra. A decisão da UE em adiar as coisas até, pelo menos,12 de abril, abriu uma janela, e aqueles de nós que se opõem ao Brexit devem aproveitar esta oportunidade”, disse Nicola Sturgeon.