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“Só me lembro do futuro.” Quem o diz é George Soros, “Pessoa do Ano” do “Financial Times”

O multimilionário é o “pai dos investimentos de risco” e também por isso detestado mas, ao mesmo tempo, George Soros é um dos principais defensores de um conjunto de valores que muitas democracias maduras, e muitas na Europa, parecem estar prontas para entregar às mãos de políticos populistas e autoritários. Soros vai deixar um legado monstruoso na área da filantropia, principalmente no que diz respeito às oportunidades académicas que proporcionou, mas o “Financial Times” escolheu-o não só pelo que já fez mas pelo que, aos 88 anos, ainda representa

Sean Gallup/GETTY

Este ano o “Financial Times” elegeu a “Pessoa do Ano” não apenas pelos seus “atos” mas também pelos “valores que personaliza”. Atos também os há, deveras, mas George Soros é hoje maior que o seu enorme portfólio de projetos sociais e humanitários.

Muito por culpa de quem o tenta denegrir, Soros, o multimilionário investidor financeiro de 88 anos, tornou-se o insuspeito representante de um leque de valores que está a ser atacado por homens e mulheres, especialmente nas democracias ocidentais, que não concordam com o conceito de sociedade de Soros. Para esclarecer: Soros diz que as fronteiras não têm sentido nem para o capital nem para as mercadorias e por isso também terão pouco para as pessoas.

Sem todas as teorias da conspiração que o envolvem, desde aquela que garante que há um plano de Soros para colocar judeus nos lugares de chefia de todos os governos da Europa até à que o elege como principal instigador dos protestos contra a posse de armas e contra a violência policial nos Estados Unidos, Soros talvez não chegasse ao topo da lista do “FT”.

Ao longo dos últimos trinta anos, Soros utilizou a sua filantropia para promover os valores políticos em que acredita: liberalismo económico, liberdade de imprensa, tolerância pela diferença. Pelo menos é o que parece se olharmos para as causas que escolheu ajudar. Nos anos 1970 criou bolsas para estudantes negros na África do Sul e, mais recentemente, enervou vários líderes europeus com a quantidade de dinheiro que doou a instituições de ajuda à integração de migrantes do Médio Oriente e Norte de África.

Críticas de todos os lados

A Hungria, onde nasceu, é também o país onde mais é odiado. O atual Governo de Viktor Orbán, primeiro-ministro húngaro - culpa-o de quase todo o mal que ensombra a Europa, e a sua fundação, a “Open Societies”, decidiu recentemente abandonar o país, mudando as operações para Berlim por culpa da "cultura repressiva" que se instalou no país. Orbán, ele mesmo um dos beneficiários das bolsas que Soros ofereceu a milhares de estudantes do leste europeu após a queda do comunismo, diz repetidamente que o plano de Soros, ao apoiar a entrada de pessoas vindas de todo o mundo em território europeu, é “destruir as soberanias” e “criar um governo global”.

Donald Trump, Presidente dos Estados Unidos, levou este sentimento de ódio até ao chamado “mainstream” ao alegar que Soros está a financiar a “caravana” de imigrantes da América Central que está a tentar entrar nos Estados Unidos - suposições que foram parte da inspiração para o ataque antissemita a uma sinagoga em Pittsburgh, Pensilvânia, que matou 11 pessoas no fim de outubro último.

“Sou culpado de tudo, até de ser o antiCristo”, diz Soros ao “Financial Times”. “Gostava de não ter tantos inimigos mas se tenho que dizer que alguma coisa devo estar a fazer bem”, acrescentou. Até no Reino Unido, onde começou a sua carreira na banca e onde completou os seus estudos universitários, ele ainda é conhecido como “o homem que quebrou a libra" por ter feito uma aposta financeira na queda do valor da moeda britânica em 1992. Agora, é por outra razão que metade do país o detesta: o valor que entregou a movimentos que defendem a permanência do país na União Europeia ultrapassa o meio milhão de dólares (€440 mil).

Soros até foi um dos alvos das “encomendas explosivas” enviadas no início do mês de outubro para várias pessoas associadas aos democratas. “Sou mesmo pintado como se fosse o diabo. Que haja extremistas motivados por teorias da conspiração ao ponto de pensar em matar entristece-me brutalmente”, disse Soros.

Ainda assim, as críticas não lhe chegam apenas dos chamados “regimes democráticos iliberais”. Há quem valorize a influência da sua filantropia mas se recuse a esquecer, por exemplo, do seu passado como um especulador implacável, cujas apostas financeiras prejudicaram países inteiros.

“Só me lembro do futuro”

Soros estudou sob a batuta de Karl Popper, e a sua ardente defesa da democracia ocidental, por oposição aos anos de domínio do bloco soviético, ao conceito de “sociedades abertas” que defendia haveriam de influenciar Soros para sempre. É, segundo ele mesmo, um “filósofo falhado” e nota-se na entrevista que concedeu ao diário britânico uma certa melancolia por um tempo onde ainda (lhe) parecia que as curvas da História estariam do seu lado. “Houve tempos em que as sociedades mais abertas se tornam muito bem-sucedidas, em que estavam a proliferar mas o curso da História mudou. É esse o problema que quero resolver agora na minha cabeça: por que razão as sociedades fechadas estão a ganhar terreno”. Em Marraquexe, onde recebe o “FT”, diz que a sua memória já não é o que era: “Só me lembro do futuro”.

À medida que vê o fim aproximar-se, Soros encontrou uma forma de preservar a sua ação filantrópica, cujo objetivo, quando ele a idealizou, era para durar apenas o tempo da sua vida, transferindo mais de 18 mil milhões de dólares (€16 mil milhões) para a fundação. O seu filho, Alexander, será o sucessor numa estrada que agora, com tanto dinheiro alocado, quase se construirá sozinha. “Lutamos por princípios e lutamos independentemente dos resultados do investimento”, diz Alexander ao “FT”. “Mas eu não gosto muito de perder.”