Internacional

A guerra que acabou com os impérios

Assinalam-se dia 11 de Novembro 100 anos sobre o armistício que pôr termo à Grande Guerra. Depois de cinco anos de conflito mortífero o mundo nunca mais seria o mesmo

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No filme “A Grande Ilusão” do francês Jean Renoir (1937) há um diálogo inesquecível entre dois aristocratas, um francês, prisioneiro de guerra, e um alemão, comandante dum campo de prisioneiros:

- Como acabará esta guerra?

- Não sei, mas duma coisa tenho a certeza: a nossa classe social sairá sempre a perder…

De facto, a Grande Guerra não se limitou a matar dez milhões de soldados e civis: subverteu equilíbrios geopolíticos e relações sociais. Dos cinco impérios que haviam começado as hostilidades quatro não sobreviverão: alemão, austro-húngaro, turco e russo. Só o império britânico sobreviverá mas a que custo, iniciando uma espiral descendente sem retorno. E das cinzas de um desses impérios, o dos czares, sairá a primeira revolução comunista da História.

Dizer que o conflito de 14-18 foi a primeira guerra de âmbito mundial não é rigorosamente verdade: a Guerra dos Sete Anos (1756/63) entre o bloco britânico e o bloco francês não se limitou à Europa, estendendo-se às Antilhas, Canadá e outros domínios coloniais. O mesmo se diga das guerras napoleónicas entre 1805 e 1815 com múltiplos ecos além Europa.

A própria Grande Guerra deixou de fora a Ásia, o Pacífico e as Américas mas a guerra naval, com entrada em cena dos submarinos, foi praticamente global. E pela primeira vez travaram-se combates nos ares, envolvendo biplanos, triplanos, dirigíveis, etc.

O mortífero jogo das alianças

Tudo começou no Verão de 1914 quase a contragosto. Em condições normais o assassínio do herdeiro imperial austríaco em Sarajevo a pouco mais levaria que a uma operação policial ou uma retaliação relâmpago austríaca sobre a fronteira Sérvia. Mas, estando as tensões entre os impérios num ponto alto, o sistema de alianças feito para garantir a paz, transformou-se numa armadilha que arrastou as grandes potências para a guerra.

De facto, o principal instrumento de dissuasão das grandes potências era a mobilização geral, já que todos os exércitos se baseavam no recrutamento universal. Tratava-se de uma operação tornada possível pela existência de uma rede moderna de caminhos-de-ferro. Implicava acolher reservistas, recrutas e voluntários nos quartéis, equipá-los, armá-los e conduzi-los de comboio aos pontos de concentração das respectivas unidades, por via de regra perto das fronteiras.

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Esgotadas as manobras diplomáticas, a mobilização geral tinha como finalidade intimidar os adversários e mostrar que o país estava pronto para a guerra. Era, portanto, a derradeira medida de dissuasão antes do uso aberto da força.

Se já todos os grandes países tinham ensaiado mil vezes a mobilização geral, nunca ninguém tinha tentado a operação inversa em caso de desanuviamento da situação. Esta operação de mandar os soldados de volta a casa seria necessariamente mais demorada e acarretava o risco de deixar o país desprotegido enquanto decorria, se os outros não fizessem o mesmo. Ou seja, receava-se que o primeiro a desmobilizar fosse o primeiro a ser derrotado sem disparar um tiro...

Como escreveu o historiador britânico A.J.P. Taylor as grandes potências foram arrastadas para a guerra pela rigidez dos horários dos caminhos-de-ferro europeus...

Um campo de batalha mortífero

Nas primeiras semanas do Verão de 1914, ainda se manobrava em campo aberto como no tempo de Napoleão mas usando armas mil vezes mais letais: espingardas de repetição, metralhadoras pesadas, canhões de carregar pela culatra.

Perante um esmagador dilúvio de fogo não havia heroísmo que valesse e os soldados dos dois lados fizeram o que os seus camaradas da guerra civil americana (1861-65) ou da guerra russo-japonesa (1905) já tinham feito: enterraram-se para terem alguma protecção contra o fogo das armas automáticas e da artilharia.

Principais vítimas dos anacronismos tácticos de 1914, os franceses que, atacando de peito feito e em campo aberto, sofreram perdas tremendas que nunca conseguiriam repor até ao fim da guerra. Mas também os alemães na Bélgica evidenciaram algum excesso de confiança que pagaram caro, quer no ataque a posições fortificadas belgas, quer ao carregarem sobre os britânicos que, fazendo fogo de salva à voz de comando como no tempo de Wellington, ceifaram fileiras inteiras de atacantes que julgaram estar a ser alvejados por fogo de metralhadora. Estas, na altura, ainda eram poucas no exército inglês e o tiroteio vinha apenas de espingardas de repetição de cinco tiros, mas usadas com precisão, rapidez e disciplina.

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Vencedores da fase inicial da guerra de movimento os alemães levam longe de mais o seu esforço, alongam muito as linhas, abrem espaços entre os diferentes corpos de exército e, às portas de Paris, no Marne, são repelidos pela contra-ofensiva francesa. O subsequente choque entre exércitos com armas automáticas e artilharia teve como consequência o impasse: a frente entrincheira-se e a tentativa de flanquear o inimigo leva a uma corrida na direcção do Atlântico e da fronteira suíça donde resultará uma dupla linha fortificada com mais de 600 km, protegida por arame farpado, valas e fortins assegurando campos de tiro mortíferos para as metralhadoras.

O impasse das trincheiras

Era uma nova situação que os generais dos dois lados não sabiam resolver. Os ataques de infantaria, mesmo precedidos por dias de barragens de artilharia, redundavam em banhos de sangue e ganhos territoriais praticamente nulos. Revejam-se as extraordinárias imagens do filme “A Oeste Nada de Novo” de Lewis Milestone (1931).

Os alemães inventaram em 1915 os ataques com gás de cloro mas a generalização das máscaras antigás e a retaliação dos contrários na mesma moeda refizeram o impasse. Nesse mesmo ano os anglo-franceses tentaram variar o campo de batalha desembarcado em Galipoli nos Dardanelos para tentar conquistar os estreitos entre o mediterrâneo e o Mar Negro à Turquia: resultou uma nova guerra de trincheiras.

Em 1916 os alemães quiseram arrastar os franceses para uma batalha de desgaste em Verdun mas a logística francesa esteve à altura: a primeira auto-estrada da História entre Bar-le-Duc e a frente, garantindo o reabastecimento e a constante rotação das tropas, travou o ataque alemão que se transformou numa batalha de desgaste mas para os dois lados. Os britânicos tentaram ataques em massa no Somme mas as perdas foram horríveis.

Só a partir de 1917 começam a aparecer ideias novas de um e do outro lado.

A hora do tanque

Franceses e britânicos apostam numa nova arma, o tanque de guerra, capaz de atravessar o campo de batalha sem ser atingido e abrir brechas nas linhas contrárias. Os primeiros tanques são lentos, pesados, pouco fiáveis e sobretudo ainda não se sabe como os utilizar. Mas em 1918 serão mais ágeis como o Renault FT que com a sua torre rotativa com uma peça e o perfil dianteiro inclinado para deflectir o fogo inimigo prefigurava os modernos blindados. Iludidos pelos insucessos iniciais inimigos os comandantes alemães nunca acreditarão nesta arma… até ser tarde demais

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Os alemães por seu lado revolucionam o combate de infantaria criando tropas de assalto, as Stosstrupen, funcionando em pequenos grupos comandados por sargentos e equipadas com metralhadoras ligeiras, granadas e lança-chamas, revelando-se capazes de tornear e eliminar posições fixas de infantaria. Em Moçambique o general Von Letow vai lançar as bases da moderna guerra subversiva, criando uma força muito móvel com alemães e soldados africanos que porá sucessivamente em xeque portugueses, britânicos e sul-africanos.

Ofensivas da Primavera

Ambas as doutrinas serão postas à prova nas ofensivas alemãs da Primavera de 1918, tornadas possíveis pelo armistício com a Rússia revolucionária que libertava um milhão de soldados para o Kaiser.

Uma destas, a Operação Georgette na Flandres levará à quase total aniquilação do Corpo Expedicionário Português na batalha de La Lys (9 de Abril de 1918). Para saber mais sobre a participação portuguesa na Grande Guerra não deixe de ler a obra monumental “Portugal e a Grande Guerra”, coordenada por Aniceto Afonso e Carlos Matos Gomes.

Outras ofensivas trazem de novo os alemães às portas de Paris em Maio de 1918 mas estas iniciativas serão vítimas do seu próprio sucesso: as tropas especiais sofrem pesadas perdas que não é possível colmatar e a artilharia e os abastecimentos alemães continuam a progredir à antiga, puxados por cavalos e não conseguem acompanhar a progressão das operações.

Do lado dos aliados, agora reforçados com centenas de milhares de soldados norte-americanos, é a hora da contra-ofensiva. Esta faz-se em várias direcções, com aviões a fazer ataque ao solo, os tanques a avançarem às centenas pelo campo de batalha, a artilharia mecanizada a acompanhar o avanço e a frente alemã a ceder sucessivas vezes. A 8 de Agosto em plena terceira batalha de Amiens o comandante supremo Hindenburg falará “no dia mais negro do exército alemão”.

Mais tarde os nazis tentarão explorar o mito da não derrota alemã e da “facada nas costas” dada por judeus e bolcheviques mas a verdade é que as forças germânicas estavam esgotadas, fartas do combate e impreparadas para este novo tipo de combate.

A guerra acabava mas não o revanchismo. A dureza das condições impostas, por pressão francesa e belga aos alemães no Tratado de Versalhes dificultará a recuperação económica germânica e estenderá a passadeira vermelha à demagogia nazi.

Acabava uma guerra e começava a larvar na sombra a próxima, ainda mais cruel e devastadora.