Internacional

Toda a gente vive no passado

Na guerra morrem nacionalidades e nascem nacionalismos. E foi há pouco tempo que esta guerra acabou e por isso é que nada ainda acabou. O segundo país mais pobre da Europa assinala dez anos de independência este sábado. Dez anos é nada e nós fomos lá ver o presente que não existe. “Toda a gente vive no passado.” Kosovo, 2018

foto ana frança

O voo que deveria partir de Zurique às seis da manhã chega cinco horas depois do previsto a Pristina, capital do Kosovo, e vem cheio de albaneses emigrados na Suíça, desejosos de aterrar e começar os festejos dos dez anos da independência do seu pequeno e sovado país. “O Kosovo não é um país pequeno. O Kosovo é grande. Há mais um Kosovo lá fora, sabes?”, explica Ajshe Ismajli, uma albanesa de 23 anos que foi para a Suíça com os pais pouco depois do fim da guerra, em 2003.

Sabemos, Ajshe, ou pelo menos sabemos a parte menos romântica do problema: a ONU estima que as remessas dos emigrantes sustentem 25% dos agregados familiares do país. Sem elas, os 30% que vivem na pobreza passariam a ser 52%. São oficialmente mais de 700 milhões de euros que entram todos os anos do país mas Ajshe, que acabou no ano passado o curso de Economia, diz que é mais: “Sempre que visitamos os meus avós levamos 500, 1000 euros connosco em dinheiro. Isto não passa pelo banco, logo não está nas estatísticas”.

Quando aterramos, um jovem pergunta-nos se precisamos de um táxi. Concordamos nos 15 euros mas não vemos nenhum táxi. Andamos pelo parque de estacionamento do aeroporto, totalmente vazio, até a um Fiat Punto azul, que já tem um condutor que não é o jovem que nos angariou. O Corão preso ao tablier (não se mexe com as curvas), tecno misturado com música tradicional dos balcãs e muitos, muitos cigarros. Não falam inglês, nem tão pouco percebem a pergunta pelos seus nomes, é preciso aquela cena do “Me Tarzan, You Jane” (que Johnny Weissmuller nunca diz nos filmes, mas serve o propósito da necessidade de recorrer ao primitivo em nós quando em preciso) para, num suspiro de alívio, se apresentarem: Aduan e Mohammed.

A guerra ainda é mais que um memória entre os albaneses. As suas terras ainda não absorveram todo o sangue que foi derramado no conflito com os sérvios, que acabou por resultar, em 2008, na declaração unilateral de independência do Kosovo. Entre 1998 e 2000, cerca de 13 mil pessoas morreram (entre as quais 10.415 albaneses 2.197 sérvios) e o número de etnias dessa lista, divulgada na página de homenagem às vítimas da guerra Kosovo, mostra bem porque é que os Balcãs ainda são um problema: sérvios, croatas, bósnios, albaneses, ashkalis, turcos, gregos, romenos, todas estas nacionalidades perderam cidadãos na guerra. Na guerra morrem nacionalidades e nascem nacionalismos. Ajsha foi educada na Suíça mas nem por isso deixa de sentir uma enorme insegurança em relação ao futuro do recém-criado seu país. “Nós não nos podemos descuidar, senão a União Europeia vem com as suas falinhas mansas, com a sua suposta diplomacia, que é mais falta de coragem do que outra coisa, e vai dar à Sérvia o acesso à União Europeia sem que o estatuto do Kosovo esteja resolvido.” A Sérvia não reconhece a independência do Kosovo e a esperança dos albaneses é que a União Europeia faça dessa a condição sine qua non ao acesso.

Foi há pouco tempo que a guerra acabou e por isso é que nada ainda acabou. No papel, a guerra terminou já perto da viragem para o novo milénio mas continua em curso nos ódios dilatados por duas classe políticas - uma senta-se em Pristina e outra em Belgrado - que parecem querer uma espécie de “normalização para Juncker ver” e não de facto uma aproximação duradoura e sincera entre etnias. “Toda a gente vive no passado”, diz Ajsha.

Por causa da atraso no voo, quando devíamos estar a regressar estamos a começar o caminho até Mitrovica, a cidade dividida no norte do Kosovo. Fazemos o caminho com Eraldin Fazliu, um jornalista albanês com 29 anos no passaporte e pelo menos mais duas décadas de rugas de expressão na testa.

Ele fala da classe política corrupta em ambos os países, das remessas dos emigrantes, incluindo aquelas que a irmã ainda há pouco enviou à família a partir da Alemanha e diz que é essa a explicação para que as ruas de Pristina estejam cheias de jovens sem emprego sentados todos os dias, todo o dia, nos cafés. Entre as pessoas com menos de 24 anos, 60% estão sem emprego. Eraldin vai calado na maioria do tempo, com o sobrolho franzido, a olhar a paisagem que, de facto, quase exige a contemplação sideral que o absorveu. “Como é que isto ainda está assim?”, pergunta sem tirar os olhos da janela nem esperar de uma estrangeira uma resposta.

São apenas 34 os quilómetros que separam Pristina de Mitrovica mas assim que saímos da capital tudo muda. O primeiro suspiro de Eraldin é quando aparece a enorme central energética em Kastriot, a menos de cinco quilómetros do centro da capital. Noventa e sete por cento de toda a energia gerada no país é proveniente da transformação do carvão, uma das formas mais poluentes de a obter. Nuvens densas de poluição turvam o céu e filtram os raios do sol que já se começa a pôr lá atrás nas montanhas. Depois vêm os campos de cultivo completamente alagados, as dezenas de casas semiconstruídas que ficaram aquém de todo o potencial que tinham e que se tornaram aberrações arquitetónicas. Os cemitérios ficam no meio dos campos, às vezes só há quatro ou cinco campas no mesmo sítio e depois mais duas ou três mais à frente. De uma delas desponta uma enorme cana que eleva a uns bons seis metros do solo a bandeira da Albânia. “Militar”, diz Eraldin. É aquela também a sua bandeira e não a nova, “imposta pelo governo”, a do Kosovo, azul, com o mapa a amarelo e seis estrelas por cima, em representação das seis principais comunidades do país.

Por todo o lado surgem dezenas de sucatas a céu aberto onde portas de automóvel, amassadas, abauladas, enferrujadas, todas encostadas umas às outras, parecem peças de um dominó gigante feito de metal, onde os últimos raios de sol fazem ricochete. As oficinas de mecânico também estão por todo o lado, mas mais perto da estrada, tal como um número impressionante de bancas a vender todo o tipo de legumes aos quais deve ter sido puxado o lustro, porque não é natural uma courgette brilhar assim.

Chegamos a Mitrovica à hora do chamamento para as orações do fim da tarde. A escassos metros da ponte, que é de facto uma fronteira e onde ainda não passam carros nem para um lado nem para o outro, os homens apressam o passo para dentro da mesquita. Mães compram pipocas às crianças envoltas em casacos e cachecóis, porque agora que o sol se pôs o termómetro baixou do zero. A ponte sobre o rio Ibar tem bandeiras do Kosovo nos postes de luz até meio, depois tem da Sérvia. Eraldin vai connosco um pouco para lá do meio da ponte e é já Tanja, uma sérvia sua colega de profissão, que nos vem buscar. Num tom seco, Tanjia diz que não é seguro ele ir e ela também não quer ter a responsabilidade de olhar por ele ou ter de se meter ao barulho se algum sérvio o provocar. Eraldin faz que sim com a cabeça e diz que nos espera em Pristina com uma história triste. Estamos noutro país.