Internacional

Mutilação genital feminina. Uma prática sem fim à vista

Esta terça-feira passou mais um Dia Internacional de Tolerância Zero contra a Mutilação Genital Feminina – uma data comum para os 200 milhões de meninas e mulheres lamentavelmente já intervencionadas em todo o mundo, para todas aquelas que correm risco de o ser e para os defendores dos Direitos Humanos. Já os atores desta intervenção nem sempre são os mesmos: se na maioria dos países são ‘praticantes tradicionais’, no Egito são sobretudo médicos – mas nem por isso os riscos diminuem

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Não sei o que me fizeram, mas sei que estou diferente. Os meus pais levaram-me ao médico sem razão aparente. Uma ‘tradição’ cultural ou social levou-os a tomar uma decisão por mim. A partir daquele dia comecei a sentir um desconforto difícil de lidar, vi os meus genitais serem cortados e mutilados, os meus direitos a serem violados. Uma história tanta vezes repetida e que retrata – ou pode retratar – o dia em que as vidas de nove em cada dez meninas e mulheres no Egito mudam para sempre, o dia em que foram submetidas à mutilação ou corte genital feminino (MGF/C).

No Egito são os profissionais de saúde – a maioria médicos, segundo os dados mais recentes da UNICEF – que levam a cabo esta “intervenção cirúrgica ao órgão genital, que incluí corte e remoção total ou parcial do mesmo ou qualquer outro ferimento, por razões não médicas”, segundo define a Organização Mundial de Saúde. Mas nem sempre foi assim. No passado – há mais de 20 anos – eram as “dayas”, que usavam métodos tradicionais, as mais procuradas para o fazer, segundo conta ao Expresso Nabil Hendy, um ativista sobre direitos humanos que integra a rede de educação Y-PEER, a qual intervém em questões de saúde reprodutiva e sexual neste país.

Sobre este tema, Nabil Hendy tem mais perguntas do que respostas. “Porque é que esta transformação aconteceu? Por causa do dinheiro? Porque eles acreditam nessa tradição? Ou porque as pessoas ficaram com medo das complicações de saúde associadas [hemorragias e infeções] e por isso tentam encontrar pessoas com habilidade para fazer esta prática prejudicial? Ou porque são poucos os profissionais de saúde a serem punidos por fazerem essa prática?”.

Para esta mudança de intervenientes, o relatório mais recente da UNICEF tem uma possível resposta: “A mutilação passou a ser feita por médicos com o objetivo de reduzir as consequências físicas da mesma”. Também a União de Mulheres Alternativa e Resposta (UMAR), em declarações ao Expresso, afirma que por trás deste ponto de viragem está “o entendimento de que a prática é necessária, mas que deve ser realizada com as devidas condições de assepsia e anestesia”.

Mesmo com a Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia a opor-se em 1994 a qualquer prática de MGF/C por profissionais de saúde, mesmo com uma lei que a proíbe no Egito desde 2008 e penaliza quem ousa fazê-lo até dois anos de prisão, este país foi “o único que teve um período em que o Governo deu o seu consentimento para a MGF/C quando realizada por profissionais de saúde”, segundo a UNICEF. Hoje, o Egito é também o único país onde são sobretudo os médicos os principais atores desta intervenção.

Mas nem mesmo utilizando bisturis, lâminas desinfetadas e anestesias locais ou gerais – os principais utensílios e métodos utilizados por profissionais de saúde nestas ‘operações’, segundo a UNICEF – as consequências e os riscos podem ser travados.

Há mesmo casos de meninas que morrem durante a intervenção: Mayar Mohamed Mousa de 17 anos, em 2016, e Shair al-Bata’a de 13 anos, em 2013, por exemplo. O segundo caso levou o médico responsável, Abdel-Samee, a ser condenado a dois anos de prisão, segundo noticiou o jornal britânico “The Guardian” nesse ano. No entanto, o médico esteve detido apenas três meses e foi considerado pelos media internacionais “o primeiro médico preso por MGF/C no Egito”.

Geralmente são as mães, e também outros familiares, que levam as meninas ao médico, que tomam a decisão de mudar para sempre a fisionomia dos genitais. São movidas pela ideia de preservar a identidade étnica, cultural e de género das meninas, julgando que “para se ser mulher é necessário ser-se submetida a esta prática”, destaca a UMAR, que sublinha também o peso das crenças sobre higiene, estética e saúde na tomada de decisão. “Entende-se que os órgãos genitais femininos são sujos e inestéticos devendo, por isso, ser cortados”, explica.

São geralmente as mães que tomam a decisão pelas suas filhas e as levam ao médico para serem submetidas à MGF/C
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“No Egito, as pessoas pensam que esse ato pode manter a menina conservadora e longe de qualquer prática sexual até o casamento. A maioria destas pessoas pensa que quando as mulheres são submetidas a esta prática mantêm-se longe de desejos ou pensamentos sexuais e, portanto, seguras até ao casamento”, conta Nabil Hendy ao Expresso.

A UMAR salienta ainda que “quando as famílias levam a menina para ser submetida [à MGF/C] acreditam que estão a fazer o melhor para ela, é uma forma de proteção, de prepará-las para a vida adulta, para um bom casamento e para não serem excluídas da sua comunidade.”

Uma prevalência maior espalhada pelo mundo

Para além do Egito há apenas mais dois países no mundo onde esta prática nefasta é realizada principalmente por profissionais de saúde. No Sudão e na Indonésia são os enfermeiros e as parteiras, respetivamente, os mais procurados para realizar a intervenção. Noutros países, na grande maioria, a realidade é diferente: são as ‘praticantes tradicionais’ – as chamadas ‘fanatecas’ na Guiné Bissau – as principais responsáveis por cortar e mutilar os genitais de milhões de meninas, raparigas e mulheres.

A UNICEF destaca 30 países na África, na Ásia e no Médio Oriente, onde há prevalência da mutilação genital feminina. A Somália é o país onde há mais mulheres afetadas – quase todas, cerca de 98% – e na Guiné-Conacri, no Djibouti e na Serra Leoa, nove em cada dez raparigas e mulheres, entre os 15 e os 49 anos de idade, não escapam à prática; no extremo oposto surgem os Camarões e o Uganda, onde apenas cerca de 1% da população feminina é afetada.

Na maioria destes países, as famílias tendem a submeter as meninas à MGF/C mesmo antes de completarem cinco anos de idade. Se por um lado a prática pode “estar a perder o seu significado de ritual de passagem para a idade adulta”, segundo a Organização Mundial de Saúde, por outro a existência de legislações que a criminalizam – em 22 países dos 30 onde a prática é dominante, ainda de acordo com os dados da UNICEF –, pode também justificar a submissão da intervenção em meninas cada vez mais novas, pois “têm menor capacidade para resistir e se opor”, sublinha a UMAR.

Mas “a legislação por si só não é suficiente, embora tenha um efeito preventivo e dissuasor, deve de ser sempre acompanhada por programas de prevenção eficazes e de um amplo trabalho em rede entre pessoas e organizações”, salienta a UMAR, que realizou em 2002 uma das primeiras iniciativas públicas sobre este tema em Portugal.

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Há ainda outros países – os principais destinos de imigração para estas comunidades – onde passou a haver registos de casos de mutilação genital feminina. O espaço europeu é um deles, onde todos os anos cerca de 180 mil raparigas e mulheres estão em risco, segundo estima o Instituto Europeu do Género.

Em Portugal, que acolhe muitas famílias sobretudo oriundas da Guiné-Bissau e da Guiné-Conacri, “estima-se que cerca de 6576 raparigas e mulheres com mais de 15 anos de idade tenham sido submetidas a esta prática”, de acordo com a nota divulgada pelo gabinete da secretária de Estado para a Cidadania e Igualdade a propósito do Dia Internacional de Tolerância Zero Contra a Mutilação Genital Feminina.

A imigração leva consigo as grandes tradições inerentes a uma comunidade, arrastando-as para outros continentes e países. “A MGF/C assume um grande significado simbólico junto das comunidades praticantes ou afetadas, sendo uma componente crucial do processo de socialização de meninas, raparigas e mulheres, permitindo a sua integração ou aceitação no seio da sua comunidade”, salienta a UMAR.

Apesar das populações na maioria destes países considerar que a MGF/C deverá acabar no futuro, a sua erradicação não tem data prevista. Apesar de todas as iniciativas, pelo mundo fora, para combater esta prática nefasta, a Comissão Europeia destaca que 200 milhões de raparigas continuam a ser vítimas desta violação. E não esconde que pelo menos até 2030 o número de meninas que correm o risco de ser submetidas a esta prática deverá permanecer idêntico.