Internacional

“Vai prosperando a tese de adiar a Declaração Unilateral de Independência da Catalunha”

Lluis Bassets, diretor da edição catalã de “El País” e analista político, crê que um Governo de concentração poderia trazer tranquilidade às sociedades catalã e espanhola

Lluis Bassets

Lluis Bassets sente-se enormemente preocupado e entristecido com a situação que se vive na Catalunha. Nascido em Barcelona há 67 anos, é um dos observadores mais privilegiados da realidade catalã, sendo diretor-adjunto do diário “El País” e responsável pela sua edição catalã. Integrou, aliás, a equipa fundadora do jornal na Catalunha, em 1982. Além de jornalista, é professor da Faculdade de Ciências da Informação. Já foi editor de Cultura, correspondente em Bruxelas e Paris e editor de Opinião.

Perito em política internacional, publica análises semanais no jornal, mas também permanece muito atento à realidade espanhola. É membro do Conselho Científico do Real Instituto Elcano e do Conselho Europeu de Relaciones Externas. Autor de uma dúzia de livros, incluindo “Lecciones españolas. Siete enseñanzas políticas de la secesión catalana y la crisis de la España Constitucional” (EDLibros, 2017) e “La gran vergüenza: ascenso y caída del mito de Jordi Pujol” (Columna, 2014).

Conversa com o Expresso na sala de reuniões de “El País” em Barcelona, a escassos metros da Praça da Catalunha, onde na manhã de terça-feira passada, 3 de outubro, começaram a concentrar-se milhares de jovens convocados para protestar contra a violência policial durante as votações de domingo, 1 de outubro.

Como olha para esta situação?

Estamos à beira do precipício e do desastre. Estou muito triste com o que se passou no domingo, dia 1. Há que dizer, contudo, que a Assembleia Nacional Catalã (ANC, organização cívica separatista) tinha tudo perfeitamente calculado. O que queriam era ter imagens da polícia espanhola a impedir avozinhas de votar. Por isso é surpreendente que Rajoy tenha permitido aquela atuação policial. Mais surpreendente ainda é encontrar uma grande quantidade de gente, amigos, daqui e de fora, que diz: “De que é que estavas à espera?” Sinceramente, esperava que o Governo espanhol não caísse na armadilha. O primeiro-ministro deu mostras de grande inépcia. Quando olharmos para isto com suficiente perspetiva, chegaremos à conclusão de que esta crise foi integralmente produzida pelo Partido Popular (PP, direita, no poder) e por Rajoy: semeou-a, regou-a, cultivou-a e até a podou, para que crescesse bem. Agora tem-na inteira, a florescer e prestes a dar cabo deste país: o Estado de Direito, o estado das autonomias, a Constituição… fizeram tudo mal. Desde que Rajoy proibiu Josep Piqué, então líder do PP na Catalunha, de participar na redação da reforma do estatuto de autonomia, seguiu-se uma cadeia de erros.

Como antevê a evolução desta crise a curto, médio e longo prazo?

O mais imediato é a famosa DUI, a Declaração Unilateral de Independência, que é difícil de neutralizar. Apesar disso, acredito que há uma tese que prospera em diversos quadrantes, embora não saiba se tem força suficiente: tentar adiar essa DUI. Ontem houve um artigo importante no diário “Ara” [independentista] de Andreu Mas-Colell, que era secretário regional de Economia no governo de Artur Mas [presidente catalão entre 2010 e 2015], catedrático, professor em Harvard, una verdadeira autoridade, em suma. Dizia que era preciso decretar uma trégua de unilateralidade durante um ou dois anos, isto é, sem ninguém renunciar a nada, abrir um espaço de reflexão. Parece-me uma excelente ideia. Fazer uma DUI porque não se sabe que mais se pode fazer é a pior opção possível. Porque aí chega-se ao final, não há mais nada. Este movimento tem um desejo: chegar a um final épico. Não excluem a hipótese de assumir uma derrota de grandes proporções, porque pensam que será uma boa sementeira para o futuro. Puigdemont [atual presidente da Catalunha] anda a sonhar com a independência desde os 12 anos.

Há outra possibilidade: um setor do partido do presidente [Partido Democrático Europeu da Catalunha, herdeiro da extinta Convergência e União, que governou desde o início da democracia até 2003 e de 2010 a 2015] defende que haja eleições regionais já. A maioria dos dirigentes do partido e boa parte das bases que o apoiam estão presos à tese de que as próximas eleições terão de ser numa Catalunha independente. Creio que cometem um erro, porque estou convencido de que a votação poderia correr-lhes relativamente bem se a fizessem agora mesmo. Com eleições e uma pequena transação com o parlamento regional, poderiam conseguir apaziguar o ambiente, congelar a situação, ir às urnas e vencer. Até a CUP [Candidatura de Unidade Popular, independentistas de extrema-esquerda antissistema] poderia aceitá-las, se houver um compromisso formal de proclamação de independência num determinado prazo. Assim seriam, realmente, umas eleições plebiscitárias.

Outra possibilidade é seguirem a rota traçada até ao sacrifício total, com um cenário dramático, de grande perda para os cidadãos. Há que recordar que a aplicação do artigo 155 da Constituição [previsto para regiões que desobedecem à lei espanhola] implicaria a anulação de competências vitais do governo regional, sobretudo para o catalanismo não-independentista, para aqueles que somos partidários de que a Catalunha tenha o máximo autogoverno. Por exemplo, uma entidade que já faz parte da identidade catalã, como os Mossos d’Esquadra [polícia regional], seria imediatamente afetada. Mas há outras: Educação, meios de comunicação… e as finanças, que já estão controladas “de facto”, embora pela porta do cavalo.

E a longo prazo?

Neste momento só posso exprimir desejos. O meu é que, uma vez resolvida a crise constitucional, restabelecida a vigência da Constituição, se tente recuperar o consenso constitucional e se faça uma proposta boa e completa à Catalunha, que implique um reconhecimento explícito e pleno da sua identidade específica, da sua língua, da sua cultura, das suas singularidades no conjunto de Espanha. Não sei se será possível fazer as duas coisas ao mesmo tempo: restabelecer a ordem constitucional, com tudo o que isso exige de repressão, e construir algo positivo. Infelizmente, os acontecimentos dos últimos dias despertaram, como sempre, os piores perfis em todo o país. A linguagem que se emprega, a perseguição à polícia e até aos seus filhos, nas escolas… nesta crise há ingredientes sociológicos, reações humanas, dinâmicas sociais que, para quem leu um pouco de história, recordam tristíssimas épocas passadas. A única coisa que falta para completar um cenário como o de 1934 é o contexto internacional, com dois totalitarismos em marcha, e as milícias armadas que proliferavam por toda a parte, e que hoje se converteram em gabinetes de comunicação digitais.

Considera possível uma mediação internacional?

Esse objetivo está no roteiro do Estado-maior independentista. Ando a ouvir isso há anos. Primeiro queriam mostrar que contra as urnas havia apenas cassetetes policiais, que até fazem mal às pessoas. Agora querem conseguir que a Catalunha apareça como uma nação oprimida e ocupada e que Espanha seja vista como uma Turquia ou um Egito. Aproximando-se esse cenário, o passo seguinte é pedir auxílio e amparo, isto é, fazer um apelo dramático para que alguém nos ajude a libertar-nos destes selvagens que estão a destruir-nos e que salve esta pobre população atacada. Nesse ponto parece que a democracia não tem recursos, que não existe, do ponto de vista de Espanha, uma narrativa sólida capaz de neutralizar a do adversário. Por isso, claro que estou a favor da mediação. Se isto se agravar, se a violência verbal se converter em violência física, se as prisões ficarem cheias e se, com efeito, Espanha se transformar numa Turquia e a Catalunha se converter num Kosovo, é claro que a ajuda externa será necessária. No fundo, há um fenómeno muito tenebroso, que é haver quem siga a teoria do “quanto pior, melhor…” Hoje parece que as duas partes estão a trabalhar para cumprir essa máxima. Na situação presente, ainda assim, a iniciativa mediadora não faz muito sentido. Puigdemont quer que haja uma mediação internacional entre duas entidades iguais. A outra parte, Madrid, nunca aceitará isso. Acredito que haverá uma intervenção exterior séria, não uma mediação, caso a crise espanhola ponha em risco o futuro da União Europeia e o euro, coisa que não se pode descartar.

Voltando ao início, há coisas que se podem e devem fazer rapidamente, antes de uma DUI: uma oferta de diálogo político com todos os partidos, baseada num horizonte definido e o compromisso de que haverá uma consulta aos catalães sobre o seu futuro. Como se fará essa consulta? Será preciso conversar sobre isto com todos os setores implicados. Uma consulta no prazo de um ano, dois anos, o tempo que se combinar. E sobre que assunto consultar os cidadãos? Sobre uma reforma da Constituição que inclua o reconhecimento da singularidade da Catalunha dentro de Espanha. Como se faz isso? Honestamente, penso que nem o PP nem Rajoy têm capacidade para levá-lo a cabo. Penso, pelo contrário, num Governo de concentração constitucionalista, que dê confiança ao conjunto de Espanha, incluindo a Catalunha. Um Governo integrado pelo PP, o PSOE, os Cidadãos, e outros partidos que queiram fazer parte dele, de boa-fé, liderado por uma personalidade que não esteja diretamente ligada a nenhuma dessas formações, com prestígio e interlocução internacional e fiabilidade económica. Há três ou quatro figuras que cumprem estes requisitos. Esse Governo devia chamar Puigdemont à ordem e não permitir que se levante da cadeira até ter chegado a um acordo. Isto seria um ideal que, na realidade, surge como um absurdo impossível, porque Rajoy está a exercer o poder e não vai cedê-lo em caso nenhum.

O rei fez o que devia?

Depois de ouvir o seu discurso na televisão, partilho a opinião de alguns dirigentes socialistas espanhóis. Para meu gosto faltaram palavras conciliatórias e de apelo ao diálogo, além de compreensão para com a grande maioria de catalães magoados com a estupidez com que Rajoy tem gerido o conflito, em concreto a jornada de 1 de outubro. À parte isto, entendo perfeitamente o ultimato contido no discurso. É, a papel químico, a posição do PP e dos Cidadãos, um reflexo excessivamente direto do pensamento de Rajoy. Do ponto de vista constitucional creio que o rei não pode nem deve fazer outra coisa. Mas do ponto de vista de um cidadão espanhol com o historial pessoal e familiar de Filipe VI, com as responsabilidades de um chefe de Estado, creio que se aproxima da situação do seu pai, o rei Juan Carlos, na noite do golpe de Estado [de militares de extrema-direita] de 23 de fevereiro de 1981.

Chegou, pois, o momento em que esse cidadão tem de pensar que se a Constituição, a regra do jogo que nos ampara a todos, está prestes a cair, destroçada, é sua obrigação ter uma atitude muito militante, muito ativa e muito explícita a favor das liberdades, da democracia, da paz e da prosperidade dos espanhóis. Acredito sinceramente que quando os seus assessores o advertem de que não deve intervir na diatribe, porque a Constituição o proíbe expressamente, dizem a verdade e têm razão. Mas colocam o rei perante um terrível paradoxo: não posso intervir em defesa da Constituição porque essa mesma Constituição não mo permite. Terrível.