Um acontecimento político que em princípio seria irrelevante, dada a sua graves carência de legitimidade, converteu-se num fenómeno político de grande relevância nacional e internacional devido à torpeza do Governo espanhol na sua gestão. Mariano Rajoy e o seu Executivo, aferrados à sua razão jurídica, acabaram por reprimir à paulada o desejo de autodeterminação de milhões de cidadãos catalães que queriam exprimir a sua opinião nas urnas, com graves custos para a sua imagem.
No fim desta jornada, todos se declararão vencedores. O governo regional catalão proclamará vitória, alegando que, apesar das dificuldades, acima da repressão, centenas de milhares de catalães foram às assembleias de voto, com a intenção de votar no referendo sobre a independência da Catalunha. Muitos conseguiram-no. Já o Governo espanhol mostrará, ufano, o triunfo das suas teses de que impediu a celebração de uma consulta contrária aos fundamentos da legislação nacional, incluindo a Constituição.
Ambas as fações terão uma parte de razão: a votação, cristalinamente ilegal, não reuniu qualquer das garantias e requisitos exigíveis para um ato eleitoral desta importância, mas o Governo central perdeu o apoio da opinião pública pelo uso da violência policial para impedir de um exercício democrático pedido por boa parte da sociedade. A mais imediata incógnita é ver que utilização fará cada parte — de um lado, o governo autónomo catalão e o parlamento onde os seus apoiantes são maioria; do outro, o Executivo nacional, liderado pelo conservador Mariano Rajoy (PP, Partido Popular) — do balanço deste dia.
A jornada ficará marcada na história da Catalunha e Espanha. Ninguém descarta uma declaração unilateral de independência da Catalunha nas horas seguintes, ou que Madrid responda, nesse caso, com uma suspensão total do autogoverno catalão, aplicando o artigo 155 da Constituição, que prevê essa contingência. O tão ansiado diálogo exigido por toda a sociedade espanhola afasta-se cada vez mais se os interlocutores tiverem de ser os protagonistas do momento histórico que se vive.
Filas desde a madrugada
De madrugada, milhares de cidadãos levantaram-se para ir às assembleias de voto, formando filas com vista a impedir o encerramento e interdição desses centros, que fora ordenada pelo Tribunal Superior de Justiça da Catalunha (TSJC). Outros tantos, inclusive crianças de idade escolar, permaneciam há no interior desses recintos, munidos de abundantes iguarias, para justificar a organização de atividades escolares.
Seguindo instruções da Procuradoria, às seis da manhã de 1 de outubro, os Mossos d’Esquadra, a polícia autónoma da Catalunha, tinha ordens rigorosas para desocupar todos os locais destinados a acolher a votação. Na maioria dos casos, os Mossos agiram com evidente passividade, evitando confrontos. Acabaram por ser a Guarda Civil e a Polícia Nacional, corpos estatais que formam o núcleo das forças de segurança em Espanha, a resolver a recusa dos concentrados a abandonar os locais de votação; entregara-lhes, em suma, o “trabalho sujo” de aplicar uma resolução judicial com alto preço para a sua reputação.
Foi então que ocorreram as cargas policiais que caracterizaram a iconografia do dia, o qual se saldou em 761 pessoas atendidas, segundo o departamento de saúde catalão, devido a contusões e golpes em toda a Catalunha. Duas destas pessoas sofreram ferimentos graves: uma contusão ocular séria e um enfarte durante o despejo de uma assembleia de voto em Tarragona. Estas imagens, além das longas filas de cidadãos que, debaixo de chuva, aguardavam a possibilidade de votar à porta dos respetivos locais, encheram as redes sociais e ocuparam as primeiras páginas das versões digitais dos principais meios de comunicação internacionais.
“Sei que não vou poder votar; a assembleia está encerrada e há polícia a impedir a entrada. Mas estou aqui para mostrar o meu desejo de decidir o futuro do meu país”, dizia, a meio da manhã, Jaume Rico, de 38 anos, catalão de nascimento, filho de gente da Extremadura e engenheiro agrónomo. Nem sequer o presidente do governo regional conseguiu votar no local mais próximo da sua residência, em Sant Juliá de Ramis, na província de Girona. Carles Puigdemont teve de se deslocar, por entre um imponente dispositivo de proteção policial, até Cornellá de Teri, onde por fim pôde exercer o seu direito democrático.
Resultados duvidosos
Ninguém sabe se será possível termos, esta noite, resultados fiáveis sobre a participação cívica, o número de centros habilitados a receber votos e como garantir a veracidade desses números. O que ninguém põe em causa é que o número de sufrágios recolhidos, seja qual for o procedimento para o fazer, será quase igual ao número de votos “sim” à independência. Os opositores à celebração deste referendo ilegal — sustentados por partidos nacionais como o PP, o Partido Socialista (PSOE) ou o Cidadãos (C’s) — recomendaram aos seus seguidores que não fossem votar, para não legitimar a consulta. Daí que não vá haver muitos votos “não” na contagem, isto se alguém for capaz de a fazer.
O TSJC ordenara, ontem, uma intervenção contra o Centro de Tecnologia da Comunicação do governo regional catalão, para impedir o funcionamento de aplicações que possibilitavam o voto telemático. O Executivo catalão acabou por não ter remédio senão permitir que os cidadãos que assim desejassem votassem em qualquer local, onde tivesse sido possível colocar uma urna, usando boletins impressos em casas e registrando a sua identidade em listas feitas à mão.
A jornada influenciou até a Liga de Futebol espanhola: a partida Barcelona-Las Palmas foi disputada à porta fechada, para evitar a concentração no Camp Nou de uma massa sensibilizada a favor das reivindicações nacionalistas. “Jogámos à porta fechada para que o mundo veja como sofremos na Catalunha”, afirmou o presidente do Barça, Josep María Bartomeu.
Este texto foi escrito cerca de uma hora antes do fecho das urnas, que na verdade nunca estiveram abertas. A incógnita sobre a interpretação dos resultados manter-se-á até altas horas da noite, tal como os efeitos que tal interpretação suscitará. O dia 1 de outubro culmina sem que nada se defina, sem grandes surpresas, sem balanços catastróficos até agora, felizmente. A segunda-feira, dia 2, e os dias seguintes, serão repletos de incógnitas.