Projetos Expresso

O deve(r) e o haver da crise

Mercado. Não faltam ideias sobre o que fazer e o que não fazer para resolver os problemas de habitação, mas algumas têm recebido maior consenso, incluindo a necessidade de os mediadores estarem cada vez mais informados e formados

O Governo quer construir 59 mil casas até 2030, das quais 26 mil serão financiadas pelo Plano de Recuperação e Resiliência
Gonçalo Villaverde

A expressão “deve e haver” remete para os antigos livros de contabilidade. De um lado, o dinheiro que se retira - o —“deve” —, e do outro o que há a receber, o “haver”. Adaptada à crise da habitação, o deve — ou o dever — é o que se deve ou pode fazer para resolver a crise e o “haver” é o seu contrário, o que não se deve fazer, pelo menos na opinião dos vários intervenientes neste mercado. E logo no topo da lista do que se deve fazer está a habitação pública.

De acordo com o programa dos (já dois) Executivos de Luís Montenegro, o objetivo é construir 59 mil casas até 2030, das quais 26 mil serão financiadas pelo Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), números considerados “insuficientes”, por exemplo, pelo ex-vice-primeiro-ministro Paulo Portas e por Manuel Reis Campos, presidente da Confederação Portuguesa da Construção e do Imobiliário (CPCI), para quem se deviam estar a construir 145 mil casas por ano, tanto públicas como privadas.

Isaltino Morais, presidente da Câmara Municipal de Oeiras, acredita que os Governos centrais se devem inspirar no trabalho que algumas câmaras têm feito nesse sentido, dando como exemplo o município que gere. “Entreguei 65 casas há coisa de um mês e a média ficou-me a €200 mil, com garagem. Do outro lado da rua tenho casas de promoção privada que são vendidas a €600 mil. Eu tenho terrenos a €100 por metro quadrado e construo por €1600/€1700 por metro quadrado, mas depois tenho madeira de pinho e os outros têm, por exemplo, sucupira. Tenho loiças sanitárias normais e os outros têm peças italianas. É possível construir a preços acessíveis, mas têm é de se libertar solos”, repara. Aliás, para este autarca esta é a “solução para o problema da habitação”, sendo que libertar não é entregar gratuitamente, mas sim a preços mais baixos. “Os promotores que compram terrenos urbanizáveis a €1500 ou €1600 por metro quadrado não podem fazer casas a preços acessíveis à classe média. Há terrenos em Lisboa e em Oeiras à venda por €2000 por metro quadrado”, argumenta, lembrando que a este valor é preciso ainda juntar os custos da construção.

Sector diz que se deviam estar a construir 145 mil casas por ano, tanto públicas como privadas

E assim se chega a outro item na lista do que se deve fazer para resolver a crise na habitação: baixar o IVA nas obras novas. Não é a ‘bala de prata’, mas é tido como uma ajuda para aliviar os custos de construção, que têm vindo a subir nos últimos 20 anos por força das crises económicas, da covid e dos vários conflitos armados na Europa e Médio Orien­te, que têm rareado e encarecido os materiais e a mão de obra. Um problema que os vários agentes do mercado imobiliário acreditam que se agravará agora com as novas tarifas de Donald Trump e com a questão da imigração em Portugal. “Não podem querer mais oferta [de casas] e depois mandar os imigrantes embora. Quem é que vai trabalhar na construção?”, alerta Paulo Portas.

Por isso é que um dos pontos na lista do “haver” é que não se pode olhar apenas para o imobiliário para se resolver a crise da habitação. Tem de se olhar para os transportes, para o aumento da imigração e da emigração dos jovens, para o novo desenho das cidades, para a tecnologia e a inteligência artificial (IA), para o aumento dos divórcios e das famílias monoparentais ou para o recuo da natalidade. Segundo o economista e ex-deputado Miguel Morgado, houve uma “alteração social” em Portugal nos últimos 10 anos, mas que trouxe “mais mobilidade” e, como tal, “pressupõe um mercado de habitação mais acessível”.

No meio desta crise da habitação estão, entre outros intervenientes, os mediadores imobiliários e, cada vez mais, os intermediários de crédito (IC), que, além do desafio de encontrar oferta para a crescente procura, têm de lidar com esta alteração social e com a tecnologia e a IA. Contudo, rejeitam que as transações deixem de ter intervenção humana, muito pelo contrário.

“À medida que as tarefas rotineiras ficam digitalizadas, os mediadores estão mais tempo na rua, cara a cara com o cliente, e é aí que há mais momentos para ganhar confiança”, repara Diogo Dantas da Cunha, CEO da plataforma Flexty, considerando que a confiança é essencial na profissão de mediação imobiliária. “A compra de uma casa é muito emocional. A razão final não é comprar casa, é ter mais um filho, é ter um cão, é querer fazer um investimento”, acrescenta Cláudio Santos, CCO da Doutor Finanças.

Por isso é que Alfredo Valente, CEO da IAD, considera que “o agente imobiliário já não pode ser apenas alguém que intermedeia, tem de ser um verdadeiro conselheiro estratégico”. Mais ainda quando as pessoas têm acesso a cada vez mais informação, mas que muitas vezes está errada. “Quem nunca recebeu uma resposta idiota do ChatGPT? A pergunta também tem de se fazer melhor”, acrescenta, recomendando que “o que não gera valor tem de ser automatizado” para que se possa “investir no que acrescenta valor, e isso implica formação à séria”.

NÚMEROS

498

mil é o número de casas em Portugal que estão a precisar de obras, segundo revela Manuel Reis Campos


8700

é o número de habitações que o Estado construiu em 20 anos. Os privados construíram mais de 800 mil, revela o presidente da CPCI


2%

é a percentagem de casas públicas em Portugal. Em Espanha, a percentagem é de 10%, e no centro da Europa é de 35%


41.358

foram as casas transacionadas no primeiro trimestre de 2025, mais 25% do que no período homólogo do ano anterior, segundo dados do Instituto Nacional de Estatística