Foi em 2021 que a Grestel, uma empresa da marca de cerâmica portuguesa Costa Nova, começou a preparar um forno para cozer as loiças com uma mistura de gás natural e hidrogénio. Daí até saírem as primeiras peças passaram-se quase quatro anos. Foi em outubro do ano passado que a empresa fez o primeiro teste e, ao contrário do que temiam, 90% das loiças não perderam qualidade, principalmente o brilho que lhes és característico. Mas houve algumas que não saíram tão bem e “isto para nós é um problema”, diz Jorge Carneiro, responsável do Núcleo de Investigação e Desenvolvimento na Grestel. Até porque a solução existe, mas ainda em teoria: ter abastecimento local direto para que se possa mudar a proporção de hidrogénio e gás natural consoante as peças que se estão a cozer.
Esta aposta da Grestel — e outras medidas de descarbonização — valeu-lhe o prémio Indústria de Futuro entregue esta semana pela Floene, que gere a maior parte da rede de distribuição de gás do país. Não só pelo projeto em si, mas pela audácia de apostarem no hidrogénio quando, segundo vários especialistas, a solução mais adequada à indústria cerâmica para substituir o gás natural é o biometano. Feito a partir de lixo doméstico ou de resíduos da agropecuária, este gás renovável tem uma “composição química semelhante à do gás natural, que é de origem fóssil”, diz Nuno Nascimento, diretor de Estratégia e Transição Energética da Floene. Por isso, continua, não liberta água como o hidrogénio, pelo que não afeta a cor ou o brilho das peças.
Além disso, até dava para ter o abastecimento local e direto que a Grestel almeja para o hidrogénio, uma vez que os projetos de biometano são perto de zonas agropecuárias ou de tratamento dos resíduos sólidos urbanos. Acresce ainda que o custo do biometano é cerca de metade do custo de produção do hidrogénio, o que teria depois impacto no preço a que ele vendido aos clientes finais. Aliás, Pedro Galhardas, sócio sénior da consultora Roland Berger e um dos autores de um estudo sobre gases renováveis, referiu na apresentação que fez na conferência da Floene esta semana, que o biometano é o ideal para “pequenos produtores sem capacidade para substituir o gás natural por investimentos em hidrogénio”. É que “é uma tecnologia ainda cara” e que exige que “a ligação entre oferta e procura seja feita de forma síncrona”, nota Pedro Verdelho, presidente da Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos (ERSE).
DGEG não sabe o que falta
Mas então, por que é que a Grestel optou por hidrogénio em vez de biometano? Porque em Portugal, o biometano “não está a ser utilizado de todo”, atira Pedro Galhardas. E porquê? Bem, isso, nem a própria Direção-Geral de Energia e Geologia (DGEG) sabe. “O plano de ação do biometano já tem quase um ano e ainda não há um projeto, não há investimento. Espanha já tem quatro em funcionamento e sete em construção. É um problema de regulação? É um problema da DGEG? Digam que nós assumimos”, desafia o diretor-geral Paulo Carmona, interpelando a audiência da conferência, na sua maioria potenciais produtores e consumidores deste gás renovável.
O biometano é mais adequado à cerâmica ou ao vidro. O hidrogénio casa bem com o cimento ou a indústria química
De acordo com Gabriel Sousa, CEO da Floene, o que falta são “políticas e regulação adequadas”. Falta também “uma política pública de incentivos”, diz Pedro Galhardas, “como manter a isenção do imposto sobre produtos petrolíferos para gases renováveis”, reforça Salvador Malheiro, presidente da Comissão de Ambiente e Energia da Assembleia da República. E há ainda questões por responder relacionadas com a matéria-prima, os resíduos. “Para licenciar uma instalação de biodigestão quem é a entidade coordenadora? Andamos nisto há dez meses (desde que foi aprovado o plano de ação do biometano) e nada. Dez meses é o tempo de gestação dos burros e não me parece que sejamos burros”, ironiza Jaime Braga, assessor da direção da Confederação Empresarial de Portugal (CIP).
Na realidade, acrescenta o engenheiro, o que realmente está em falta é o diálogo entre os vários departamentos do Estado. Mas também entre os vários atores que compõem a cadeia de valor do biometano, diz Pedro Galhardas: agropecuária, recolha e tratamento de resíduos, câmaras municipais, futuros produtores e consumidores; entidades licenciadoras e financiadoras. “Isto não é fácil”, lamenta, acrescentando que, por tudo isto, em Portugal “há um atraso face à Europa”, principalmente em relação a Dinamarca, França ou Itália, onde, nos últimos dois anos, foram criados vários incentivos e tarifas específicas, acrescenta Cristiano Amaro, responsável pela área do biometano na Capwatt.
O mesmo não se passa no hidrogénio. Neste caso, Portugal está alinhado com o resto da Europa, estando na fase dos projetos-pilotos, como o da Grestel, ou o da Hychem (antiga Solvay Portugal) que vai produzir hidrogénio e distribuí-lo na região de Lisboa a partir de 2027. Não deixa, contudo, de serem necessários apoios para as unidades de produção e para as curtas ligações da rede de distribuição às indústrias ou outros consumidores. “Há projetos que não avançam por dois quilómetros”, nota Nuno Nascimento.
Gases renováveis
5
mil milhões de metros cúbicos (bcm) foi a quantidade de biometano produzido anualmente na Europa nos últimos dois anos, 95% dos quais em seis países
20%
é a percentagem de hidrogénio que se consegue injetar na redee misturar com o gás natural sem comprometer a qualidade e a segurança
1,3
mil milhões de euros é o investimento necessário para atingir as metas para o biometano inscritas no Plano Nacional Energia e Clima 2021-2030