Projetos Expresso

A importância de voltar a saber perguntar

Tecnologia. Estima-se que estejam a ser criadas cerca de 10 mil plataformas de inteligência artificial (IA) por dia, mas desconhecimento e medo levam a escassa adoção desta ferramenta digital. Há o risco de que o ensino possa ficar para trás

Com a IA vamos ser mais inteligentes? Lourenço Medeiros (SIC) e Paulo Dimas (Centro para IA Responsável) refletiram sobre o assunto

Goste-se ou não, a inteligência artificial (IA) é uma realidade inegável, está a acontecer a grande velocidade, e é urgente não perder a carruagem. “É um caminho sem retorno”, diz Hugo Silva, curador da exposição AI Innovation Garden, um dos oradores no círculo de entrevistas e debates sob o tema “Inteligência Artificial: Amamos ou Odiamos?, que teve lugar esta semana.

O também CEO do grupo United Creative afirma que a adoção desta tecnologia “é urgente”, mas lamenta que exista ainda muito desconhecimento. “Para 90% das pessoas que entravam na exposição, a experiência com inteligência artificial resumia-se ao ChatGPT. Estima-se que estejam a ser criadas cerca de 10 mil plataformas de IA por dia e este desconhecimento é muito limitativo. Há ainda uma grande falta de informação e interesse. Há medo”, avisa.

Hugo Silva diz que ultrapassar esta dificuldade passa muito por começar a usar as ferramentas, e revela a surpresa que sentiu quando se apercebeu que quem mais tinha conhecimento desta tecnologia eram as pessoas mais velhas. “Achámos que seriam as primeiras a fugir mas foi o contrário. A experiência que já têm faz a diferença. Este tipo de plataformas é um superpoder, pois vem complementar o que já sabemos. É uma mudança de paradigma. Até aqui tínhamos de saber a resposta, a partir daqui temos de saber fazer a pergunta”, diz.

Também Pedro Boucherie Mendes, diretor de conteúdos digitais de entretenimento na SIC, acredita que um dos grandes benefícios da IA é “voltar a valorizar o saber perguntar”. “Para estarmos nos softwares vamos ter de saber colocar as perguntas. Esse desafio para a inteligência humana é incrivelmente bom”, diz. Para Boucherie Mendes, os benefícios da IA são incrementais e, tal como a internet nos permite “não ir para a fila das finanças entregar IRS”, a IA também vai melhorar a vida das pessoas. “Não acredito que possamos dizer ao ChatGPT, a curto prazo, ‘arranja um fim de semana romântico com sushi, vinho da Bairrada e massagens’, mas, ‘quero o MEO em minha casa, rescinde com a NOS’, sim, e ele trata”, diz.

Tanto Hugo Silva como Pedro Boucherie Mendes alertam para a urgência de o ensino estar a par e adotar esta nova tecnologia. “É uma pena que o nosso sistema de ensino não esteja a acompanhar. Se as escolas não se preparam para isto, daqui a pouco tempo temos um problema gravíssimo, com crianças sem perceberem a pertinência do ensino”, alerta Hugo Silva, que reconhece que a implementação da IA na parte curricular das escolas “é muito desafiante”. “Há uma atualização em permanência, mas é preciso não perder esta boleia”, avisa.

Robô como melhor amigo

O ChatGPT pode ainda não pedir sushi e uma massagem, mas já desliga o aquecimento e muda a estação de rádio do carro, sem que o condutor tenha de tirar as mãos do volante. “Dizer algo tão simples como ‘olá IDA, tenho frio” e ligar-se automaticamente a climatização, reconhecendo se é o condutor ou o passageiro que está a falar, e ajustar a temperatura para essa zona, é verdadeiramente revolucionário”, diz Marília Machado, diretora geral da Volkswagen Portugal, marca que, desde 2024, tem modelos de carros com ChatGPT no assistente de voz.

Um potenciador de talento, é como o humorista Fernando Alvim vê na IA “uma espécie de dopamina” para quem tem criatividade. “A inteligência artificial não tira nem anula a criatividade, vai antes dar mais ideias. É mais um desafio em que temos de estar a um nível mais elevado. Só os melhores vão passar à nova fase. Lembrem-se da famosa partida de xadrez entre o supercomputador da IBM e Kasparov. O resultado é o que sabemos”, diz.

No que respeita às relações humanas, Fernando Alvim acredita que, no futuro, muitas pessoas terão como principal amigo um robô ou um computador com IA. “As pessoas terão esse amigo para passar muitas horas juntos e quando querem ir beber um copo ou ter relações físicas combinam com alguém. A máquina nunca vai fazer conchinha e isso, para o ser humano, é muito importante”, brinca.

Mais a sério, Fernando Alvim fala do potencial que a IA pode ter no combate à solidão. “Tens o teu avô, o Sr. Francisco, num lar, e a enfermeira Cristina, que lá está, o que lhe diz é: ‘Bom dia, tudo bem? Toca a acordar.’ Mas depois, pouco ou mais nenhum tempo ela terá. O robô sabe quem é o Sr. Francisco, adepto do Benfica, que gosta de filmes do Fellini, de artes marciais e vai saber muito mais que a enfermeira Cristina, que lhe diz bom dia”, afirma.

Quanto aos aspetos negativos desta tecnologia, Pedro Boucherie Mendes fala do lado “assustador” dos vídeos e vozes manipuladas, mas, ainda assim, não tem dúvidas quando lhe perguntam se quer um mundo com ou sem IA. “Quero um com inteligência artificial, mesmo tendo consciência de que há situações que não controlamos”.

Fernando Alvim confessa estar na fase de encantamento e entusiasmo por esta tecnologia, mas reconhece que a facilidade com que a IA nos permite aceder a dados e respostas pode tornar-nos “um pouco preguiçosos e não pensarmos tanto como fazemos agora”, e que a tecnologia pode ser usada para fins que não estiveram na génese da sua criação. “As vozes sintéticas estão aí, o deep fake está aí, só não vê quem não quer”, diz.

Já Hugo Silva admite que o tema da proteção de dados e segurança são complexos e precisam de regulação, mas afirma que o maior perigo de todos é a não adoção e a ignorância sobre este tipo de plataformas. “Quanto mais depressa as pessoas perceberem o que é possível fazer com a inteligência artificial, mais se resguardam dos perigos”, avisa.

Primeiro podcast com voz clonada com IA

O livro “Memórias, de Francisco Pinto Balsemão” é o primeiro, em Portugal, transformado num podcast com a voz do próprio autor, clonada por inteligência artificial (IA). O fundador do Expresso gravou com a sua voz a leitura de algumas páginas da obra, e a agência de inovação Instinct aproveitou o trecho e clonou a voz do também fundador da SIC, para a leitura da totalidade das mil páginas do livro. O podcast, já disponível em expresso.pt ou qualquer app de podcasts, tem 24 episódios, com periodicidade semanal, distribuídos por quatro temporadas. “Utilizei o que se poderá chamar a minha inteligência natural para escrever as mais de 1000 páginas das minhas memórias. Achei que, para as ler para este novo podcast, já podia e devia contar com uma ajuda da inteligência artificial”, diz Francisco Pinto Balsemão.