Comecemos pelo microbiota e o microbioma. O primeiro refere-se ao conjunto de microrganismos (bactérias, vírus ou fungos) que residem, por exemplo, nos tecidos e fluidos humanos. O segundo diz respeito a todos os seus genes. Agora vamos à sua importância em oncologia.
“As bactérias que habitam no nosso corpo têm um papel fundamental na progressão do tumor e na resposta à terapêutica”, explica Ana Margarida Almeida, responsável pelo Laboratório Translacional do Microbioma na Saúde e na Doença do Instituto de Medicina Molecular João Lobo Antunes. Mais de 90% habitam no sistema intestinal e a pesquisa comprova “que pessoas saudáveis têm uma composição diferente de microbiota das pessoas com cancro”. A conduzir um projeto sobre cancro colorretal que “vai envolver milhares de portugueses”, a investigadora e a sua equipa querem “identificar que bactérias são biomarcadores nas pessoas que têm pólipos”, para que no futuro “não venham a desenvolver” a doença. Se atualmente a “única forma de sabermos se pessoas têm pólipos é com colonoscopia”, o objetivo é “dentro de três anos ter um teste que permita identificar” quem está na fase inicial de cancro colorretal de forma menos invasiva, através da recolha de uma “amostra fecal” para proceder “à sequenciação do microbiota”.
“De todas as espécies bacterianas conhecidas, apenas 11 são consideradas carcinogéneos pela International Association for Cancer Registries”, revela o secretário-geral da Sociedade Portuguesa para a Inovação em Microbioma e Probióticos, Pedro Brogueira. O infecciologista esclarece que “as bactérias ou as suas funções podem ser consideradas cúmplices, apesar de não diretamente causais” de tumores, sobretudo por contribuírem para a “desregulação do sistema imunitário” e por atuarem “em conjunto com outros fatores carcinogéneos no desenvolvimento da lesão”. Importa também “realçar o papel de uma microbiota saudável na prevenção do cancro” e do estilo de vida.
Helicobacter pylori
Um dos casos mais estudados de ligação entre agentes infecciosos e cancro é o da bactéria Helicobacter pylori, que, segundo a Organização Mundial de Saúde, é responsável por 80% a 90% dos casos mundiais de cancro gástrico e tem particular relevância em Portugal: “Em estudos realizados no início deste milénio a prevalência rondava os 70%-80% na população adulta”, afirma Diogo Libânio, assistente hospitalar de gastrenterologia no IPO do Porto. Portugal é o país da União Europeia com mais mortes por cancro do estômago e o sexto em todo o mundo, e espera-se que até 2050 a incidência de cancro digestivo, que é o quarto mais comum em Portugal, suba 25%. O professor assistente na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto refere que “esta bactéria está associada a baixas condições de salubridade”, mas faz questão de salientar “que não há certezas do porquê de sermos um país de elevada prevalência”. Mais importante é “pensar em estratégias de testagem e tratamento na população”, com esperança no desenvolvimento de “estratégias para modulação do microbioma”.
É neste campo que se enquadra o “projeto-piloto” de prevenção que está a decorrer na ilha Terceira, sob orientação do Centro de Oncologia dos Açores Prof. Doutor José Conde. O programa “oferece a possibilidade aos utentes das farmácias de realização de um teste de forma fácil e gratuita, através da entrega de um kit para colheita fecal”, conta João Macedo, presidente da instituição. Se o resultado for positivo, “será prescrita a terapêutica de erradicação”. A expectativa é que o programa possa vir a ser aplicado noutras zonas do país.
Entre terapias inovadoras, a professora da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto e investigadora do i3s Céu Figueiredo destaca “ensaios clínicos em curso que avaliam o impacto do transplante de microbiota fecal na resposta imunológica e na eficácia da imunoterapia em doentes com melanoma e com tipos particulares de cancro do pulmão e de cancro colorretal”. Já o projeto de doutoramento do coordenador do Departamento de Oncologia do Hospital de Cascais Dr. José de Almeida, Diogo Alpuim Costa, procura identificar “a presença de algumas bactérias patogénicas que não deviam lá estar e diminuição de bactérias que são protetoras” em doentes com cancro da mama. Vai-se falar cada vez mais no “eixo tumor-intestino”, garante, com a certeza de que será possível “transplantar a microbiota” de doentes que “tenham respostas excecionais” a tratamentos para beneficiar outros, seja com cápsulas ou outros métodos. “Há cocó que vale ouro”, elucida.
Consultório
Qual é o impacto das bactérias e de outros agentes?
“Certas bactérias produzem determinadas substâncias (metabolitos) que podem ser carcinogénicas ou ter propriedades indutoras de tumores”, aponta a diretora técnica do Laboratório de Genética do Centro de Medicina Laboratorial Germano de Sousa (parceiro do projeto), Ana Guia Pereira.
Há cancros mais afetados?
Sim, é o caso do gástrico, colorretal, hepático, pancreático, ente outros.
O que há de novo?
Modelos de inteligência artificial, por exemplo, têm melhorado a capacidade de prever o risco com base no perfil do microbioma. O foco em biomarcadores microbianos, personalização de terapias ou o uso de big data são outras das tendências de futuro.
Onde saber mais?
O site da Sociedade Portuguesa para a Inovação em Microbioma e Probióticos é um bom ponto de partida: https://spimp.pt/.
Céu Figueiredo
Investigadora do i3S
Agentes infecciosos são 15% dos casos de cancro
Qual é o impacto das bactérias em oncologia?
Os cancros atribuíveis a agentes infecciosos representam cerca de 15% do total de casos no mundo. Existem vários que são considerados como causa de cancro pela Agência Internacional de Investigação em Cancro da Organização Mundial de Saúde.
Quais são os casos mais relevantes?
Helicobater pylori é o exemplo mais relevante: esta espécie bacteriana infeta quase metade da população mundial e é considerada como causa de carcinoma do estômago e de um linfoma também localizado no estômago. Apesar de tudo, apenas uma pequena proporção dos indivíduos infetados por Helicobacter pylori vem a desenvolver cancro do estômago.
Como acha que este estudo vai evoluir?
O conhecimento dos microrganismos, dos seus fatores de virulência e dos metabolitos por eles modificados pode vir a ser utilizado, por exemplo, para melhorar o diagnóstico precoce. No futuro, poderemos vir a modular o microbioma como forma de maximizar a atuação dos tratamentos.