A preservação da água é um dos maiores desafios do século XXI, e da sua boa gestão dependem oito mil milhões de pessoas. Se, por um lado, nos habituámos a ouvir dizer que se trata de um bem precioso, por outro não estamos dispostos a pagá-la a preço de ouro. Em Portugal pinta-se o retrato de um sector ineficiente, em que se perdem, em média, três litros de água por cada 10 litros comprados à Águas de Portugal. Quem o diz é Pedro Perdigão, CEO da Indaqua, que no fórum “O Futuro da Água” lançou um alerta em relação às tarifas praticadas pelos municípios: são demasiado baixas e para garantir a sustentabilidade do sector “devem subir, em média, 50%”.
O número pode parecer chocante, mas, de acordo com o gestor, mesmo nos concelhos de rendimento mais baixo, um aumento de 50% nas tarifas médias teria um peso de apenas 2% nos rendimentos das famílias. No fundo, concretiza o princípio do “utilizador-pagador, previsto na lei desde 2005”, que estabelece que quanto mais se gasta, mais se paga. Contudo, acrescenta, mesmo sem aumentos, na última década €1750 milhões foram suportados pelos portugueses. A dependência do sector face ao contribuinte aumentou, mas não é o consumidor que tem de estar disposto a “pagar as ineficiências”.
Para Alexandra Serra, o aumento das tarifas também seria uma medida a considerar. A presidente da Águas de Portugal, empresa responsável pela gestão pública da água, também marcou presença na conferência, onde afirmou que a penalização pelo uso excessivo deve ser aplicada através “do aumento do preço da água nos escalões mais elevados”. Os resultados de não o fazer são “péssimos”, por duas razões: “Se a água é barata, as pessoas não têm incentivo de poupar e as entidades gestoras não têm recursos financeiros para a manutenção.” Quem tem um entendimento diferente é Ricardo Leão, presidente da Câmara Municipal de Loures, que, apesar de não discordar totalmente do agravamento das tarifas, acredita que há “outras vias” a seguir. “Para evitar disparidades, não podemos olhar para as tarifas como a única forma de combater as perdas”, apontou, destacando que há ainda caminhos a percorrer no espaço público, designadamente apelando às boas práticas de consumo e apostando na reutilização de águas.
Investimento na rede
Em 20 anos, construiu-se toda a infraestrutura hídrica portuguesa, que tem um valor estimado de €15 mil milhões, de acordo com Joaquim Poças Martins, professor da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto (FEUP). Além de apontar o envelhecimento da rede como fator crítico, diz que para se poder renovar são precisos “pelo menos €300 milhões por ano”, e a situação de seca que se faz sentir, particularmente no Algarve, retrata bem a urgência na manutenção.
Os fundos europeus, como o Portugal 2030 (PT 2030) — com uma dotação de quase €23 mil milhões —, podem ser aproveitados nesse sentido. Aliás, como indicou Dulce Pássaro, ex-ministra do Ambiente, só o Algarve vai receber €780,3 milhões e não há “restrições em usá-los para substituição de redes”.
Sobre o tema, o autarca de Loures, que é também vogal da Associação Nacional de Municípios Portugueses (ANMP), lamentou a falta de aproveitamento do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) e reforçou a importância do Governo como “parceiro de investimento”.
Público ou privado?
Entre os vários desafios do sector destacam-se ainda os problemas de gestão. A dicotomia entre público e privado, como em tantas outras áreas da economia, esteve em análise na conferência, apesar de já existir um supervisor público, a Entidade Reguladora dos Serviços de Água e Resíduos (ERSAR).
A antiga ministra da Agricultura e do Mar e agora sócia da Vieira de Almeida, Assunção Cristas, alertou para a importância de se debater se o sector da água poderia ou não ser privatizado, por acreditar que “seria benéfico ao nível da gestão”.
Já para o CEO da Indaqua não restam sequer dúvidas nem questões a debater: “A solução mais eficiente passa por um parceiro privado.” No seu entender, mesmo no que diz respeito à manutenção e contenção de perdas na rede, a chave está muito mais na gestão do que propriamente nos investimentos.
Há, no entanto, opiniões em contrário, que defendem a importância de manter o sector público. “Os exemplos dos últimos anos são de abandono das concessões privadas, e não o inverso”, vincou Ricardo Leão, sublinhando que a água é um bem público que deve, por essa razão, ser gerido pelos próprios municípios. Aliás, revelou, a área de Lisboa está já a debater um sistema metropolitano de água, baseado no conceito de intermunicipalidade, que permitiria ganhar escala e mais capacidade para recorrer a financiamento para manter as redes.
Perante esta possibilidade agora em discussão, Pedro Perdigão criticou a “fixação com a escala” e afirmou que um “conjunto de entidades ineficientes não forma uma única que seja eficiente”, reforçando que os 30% de perdas e de água que fica por faturar são um reflexo real dessa mesma ineficiência.
CUSTOS EM PORTUGAL
6000
milhões de euros é o custo estimado para a substituição da rede de abastecimento, sem contar com os instrumentos de combate à escassez
€2
é o preço de levar 1000 litros de água, ou 200 garrafões de cinco litros, até casa das pessoas e voltar a devolvê-la à natureza
1500
milhões de euros é quanto vale, por ano, o sector da água em Portugal. Mas para renovar a infraestrutura é preciso 20% desse valor anual
Agricultura “tem de pagar” água
A agricultura consome 70% da água que se gasta em Portugal, mas, mesmo despendendo muitos recursos, deixar de o fazer “não é opção”. Esta é a perspetiva de José Eduardo Martins, sócio da Abreu Advogados, que, embora defenda “uma agricultura de exportação e agricultores independentes de subsídios”, aponta à atividade o defeito de pagar pouca água. “Não acredito em agricultura que não pague água, assim como não há fábricas que não paguem eletricidade”, afirmou, referindo que urge atribuir-lhe um preço enquanto fator de produção. Em contraponto, Álvaro Mendonça e Moura, presidente da Confederação dos Agricultores de Portugal (CAP), afirma que os agricultores são os primeiros a ter “cuidado com a água” e que a gestão seria melhor se não se deparassem com tantas “letras pequeninas”. Se, por um lado, o Ministério da Agricultura facilita as autorizações para criar charcas, por outro é obrigatório aguardar uma autorização, que “não chega”, da Agência Portuguesa do Ambiente (APA). Além de ultrapassar a burocracia, para continuar a avançar é preciso mais capacidade de armazenamento e deixar de ter medo de transvases de água, defende. Também aqui as opiniões divergem. Para José Eduardo Martins, fazer essa transferência de água é “deitar fora a Convenção de Albufeira [Convenção de Cooperação para a Proteção e o Aproveitamento Sustentável das Águas das Bacias Hidrográficas Luso-Espanholas]”, avisando ainda que é melhor não abrir espaço a que Espanha possa fazer o dobro e, consequentemente, Portugal ficar sem água. “Se as guerras do século XXI vão ser as da água, é melhor não brincarmos aos transvases”, reiterou.