Chamam-lhe o bem mais precioso que existe porque é essencial à saúde humana e animal e porque sem ela não existiriam alimentos ou mesmo evolução tecnológica. Por exemplo, extrair lítio para as baterias dos telemóveis e dos carros elétricos exige água. Mas só agora, que as secas extremas começaram a ser mais frequentes e a acontecer em zonas onde não aconteciam, é que se começou a pensar na possibilidade de um dia faltar água.
Contudo, como explica Inês dos Santos Costa, sócia da Deloitte — e uma das oradoras do “Futuro da Água”, fórum organizado pelo BPI —, “a água está cá toda, só não está disponível com o equilíbrio e regularidade que havia antes porque o clima está desregulado”, e por isso o que tem de se fazer é gerir melhor o abastecimento e os consumos, para que se vá buscar menos água à natureza.
Porque, diz outro dos convidados, o professor da Faculdade de Engenharia do Porto (FEUP) Joaquim Poças Martins, “estamos a ter problemas de água quando não tínhamos nada que os ter, ou seja, Portugal tem algumas situações de escassez de água precisamente por má gestão e falta de políticas, e não porque não tenhamos, pelo menos para já, água em falta”. É o caso do Algarve, repara, onde entende que o problema atual se resolveria com melhor gestão. Pelas contas do professor, a quantidade de água necessária para abastecimento público no Algarve num ano é de 75 milhões de metros cúbicos, incluindo o turismo. Desses 75 milhões, 15 milhões são roubados, não cobrados ou perdidos em fugas, algo que as câmaras podiam resolver “facilmente”, e 40 milhões de metros cúbicos vão para as estações de tratamento de esgoto. “É uma estação de tratamento em que se gastou quase um euro por metro cúbico, é uma água ótima. O que se está a fazer com uma água ótima que dava para regar um campo de golfe, que dava para regar laranjas, abacates e não sei o quê, o que é que nós fazemos inteligentemente? Simplesmente deitamos ao mar. Acho que é fantástico”, ironiza.
Professor Joaquim Poças Martins defende que os campos de golfe devem ser regados com águas tratadas
A reutilização de águas residuais é uma das medidas que reúne mais consenso, tal como a captação de água da chuva e a dessalinização. Aliás, já existem alguns exemplos disso, mas à escala de uma fábrica, de um produtor agrícola ou de uma cidade, como é o caso das lagoas de retenção no Parque Eduardo VII, em Lisboa. Por isso é que, diz a administradora executiva da Águas de Portugal, Alexandra Serra, estas medidas “exigem novos modelos de negócio e a concertação de estratégias entre os agentes do sector [público e privado]”. E requerem também que o Governo defina “uma estratégia para a gestão dos recursos hídricos a nível nacional para todos os utilizadores” e elimine as burocracias, que não se coadunam com a urgência de algumas medidas, como, por exemplo, para a construção de “uma simples charca”, acrescenta o presidente da Confederação de Agricultores de Portugal (CAP), Álvaro Mendonça e Moura.
Apesar de a população mundial estar a crescer e de haver cada vez mais pessoas com acesso a água potável, o maior consumidor continua — e continuará — a ser a agricultura. A agricultura e não os agricultores. Porque “os alimentos é que gastam muita água”, diz Poças Martins. Água que é depois “naturalmente devolvida ao seu ciclo natural”, acrescenta Mendonça e Moura. Só no Algarve, a agricultura consome 135 milhões de metros cúbicos para produzir, por exemplo, “a melhor laranja do mundo”, considera Poças Martins. Pelas contas do professor da FEUP, “um quilo de laranjas, que é aquilo que uma família de três ou quatro pessoas come num dia, precisa de 300 ou 400 litros de água para ser produzido, que é aquilo que uma família de quatro pessoas gasta num dia para tomar duche, para usar na casa de banho”.
A boa gestão de recursos é, no entanto, mais urgente neste sector, que, diz Mendonça e Moura, tem melhorado muito. “Há 30 anos, por cada hectare regado gastavam-se 14 mil metros cúbicos de água, atualmente a média ronda os quatro mil. Os agricultores, por sentirem todos os dias no terreno e na pele as consequências da escassez de água, são os primeiros a querer e a encontrar soluções para a melhor gestão deste recurso”, e “têm investido na utilização das mais recentes tecnologias no processo de rega, na utilização de sensores no solo e de aplicações informáticas, que permitem dar a cada planta apenas a água de que necessita para o seu desenvolvimento, e não mais do que isso”.
TRÊS PERGUNTAS A
Mariana Mazzucato
As melhores e mais sustentáveis práticas de gestão dos recursos naturais exigem investimento, mas este é frequentemente apontado pelos governos como um obstáculo, com o argumento de que há pouco dinheiro. Como é que esta missão comum de poupar água pode ser financiada de forma sustentável?
O que é incrível é que o dinheiro é criado quando nos preocupamos com as coisas. Quando temos guerras, o dinheiro é literalmente criado a partir do nada. A Alemanha, de um dia para o outro, criou 100 mil milhões de euros para o esforço de guerra devido à invasão russa da Ucrânia. Mas para os problemas sociais, quer se trate da saúde, da educação ou da água, dizem sempre que não há dinheiro suficiente. Ou se gastam mais numa área, dizem que têm menos dinheiro para gastar noutra, que é uma espécie de troca. E isso é falso. É completamente falso. Esta é uma oportunidade para investir na inovação. Como economista, lembro sempre aos governos que o dinheiro que têm através dos empréstimos públicos, dos subsídios, dos resgates da covid, deve ser condicionado ao investimento do sector privado, à inovação, a um melhor tratamento dos seus trabalhadores, ao pagamento de um salário digno e à utilização de práticas de produção sustentáveis. É, por isso, que temos aço verde na Alemanha. Porque o banco público, o KSW, colocou como condição para o empréstimo que concedeu à indústria siderúrgica que ela reduzisse o conteúdo material da produção e isso exigiu inovação e investimento, o que conduziu a um sector verde competitivo e bem-sucedido no domínio do aço.
Em Portugal, uma das principais queixas das empresas é que a maior parte do dinheiro que vem do “resgate da covid” — o Plano de Recuperação e Resiliência — vai quase todo para o Estado...
Devemos ter sempre cuidado para que qualquer tipo de dinheiro público, seja ele proveniente da Comissão Europeia ou do Governo, faça acontecer coisas que não teriam acontecido de outra forma. Por isso, é um desperdício de dinheiro se estivermos apenas a dar dinheiro para grandes projetos de infraestruturas, que na realidade deveriam ter sido construídas mais cedo. O que tenho visto é que a capacidade administrativa é muito fraca em muitos países, pelo que quando o dinheiro vem da Europa, também não é muito bem gasto. Em Itália, foi necessário devolver muitas vezes o dinheiro dos fundos estruturais do passado.
Portugal tem uma extensa costa marítima, a dessalinização seria uma boa solução?
Não sei o suficiente sobre Portugal, mas sem dúvida que a dessalinização é extremamente importante, especialmente para países como Portugal ou Itália que têm uma enorme costa marítima. Só que temos de ser cuidadosos porque os próprios métodos de dessalinização têm de ser rigorosos e inovadores.