Projetos Expresso

Tratar por tu a doença cujo nome deve ser pronunciado

Futuro. Dizem as previsões e os especialistas que daqui a poucos anos dois em cada três portugueses terão cancro. Urge pensar em soluções eficazes na promoção do conhecimento, porque, se for detetado a tempo, é potencialmente curável
Era uma doença escondida, dita em surdina. Mas se é um dos preços a pagar por vivermos mais, está na hora de a encararmos
João Carlos Santos

Não vale a pena criar ilusões: todos sabemos o que significa a expressão “morreu de doença prolongada” que se ouve recorrentemente nos noticiários. A doença — cujo nome muita gente se recusa a proferir — existe, está entre nós, veio para ficar e chama-se cancro. E talvez o primeiro passo para desmistificar a palavra e a doença seja começar a tratá-la por tu, na comunicação social, em casa e nas conversas de café.

Se é verdade que surgem 60 mil novos casos todos os anos, também se verifica que, se o cancro for detetado em estadio inicial, o prognóstico melhora consideravelmente. É por isso que a palavra deve ser dita, que os fatores de risco que causam o seu aparecimento devem ser conhecidos e que as formas de prevenção — nomeadamente os rastreios — devem ser disseminados. Por exemplo, o rastreio do cancro colorretal (neoplasia maligna que mata diariamente cerca de 11 portugueses) poderia eliminar cerca de 50% da doen­ça em estadio avançado. Ou seja, se Portugal implementasse um rastreio de base populacional que cobrisse toda a população e se esta, por sua vez, aderisse, poderiam salvar-se muitas vidas. Vítor Neves, presidente da Europacolon Portugal, põe a tónica na “obrigatoriedade” que cada cidadão tem de exigir ao seu médico a realização do rastreio, mas para isso a população tem que estar informada. É aqui que a literacia entra em ação, mostrando que prevenir não cabe apenas aos especialistas, é também da responsabilidade de cada um.

Estar próximo das pessoas

A iliteracia entranhada entre os portugueses relativamente à temática do cancro preocupa instituições e quem lá trabalha. A Liga Portuguesa Contra o Cancro (LPCC), conhecedora desta lacuna, está presente em todas as capitais de distrito e sabe, desde a sua génese, que a única forma de combater a falta de informação é estar perto das pessoas. “A saúde só é um problema quando não a temos, mas a premissa deve ser ao contrário”, lembra Francisco Cavaleiro Ferreira, presidente da LPCC. Para o espe­cialista, o problema do cancro deve ser “atacado” antes de ele aparecer, prevenindo-o.

Para os três Institutos Portugueses de Oncologia (IPO), o grande desafio é garantir o acesso a todos os cidadãos que deles precisem, mas uma perspetiva estratégica que contemple a literacia é também apontada como prioridade. Como se consegue? Deixando de estar fechados em si próprios e abrindo as portas à comunidade. O IPO de Coimbra tem desenvolvido campanhas, todos os meses, que incidem em vários tipos de cancro, explica Margarida Ornelas, presidente desta instituição. A realização de iniciativas abertas aos utentes e a criação de grupos de doentes e familiares que tratam temas específicos, como o luto, são exemplos de atividades levadas a cabo pelos IPO. Não obstante, Rui Henrique, do IPO do Porto, assume que as instituições “têm sido muito passivas na forma como abordam a cidadania e a sociedade”, indicando que ainda há muito a fazer. “O nosso grande aliado é a população”, lembra.

Tenho cancro… e depois?

O “depois” é — como relatam as pessoas que já passaram pelo cancro — o que realmente assusta. A sensação de se estar perdido após um diagnóstico, sem saber muito bem o que perguntar (nem a quem) ou não saber onde ir buscar informação para situações concretas, é transversal e assola a maio­ria. É isso mesmo que explica Beatriz Viegas, sobrevivente de cancro da mama e fundadora da revista “Onco Glam”, criada para partilhar truques, dicas e conselhos. “Antes de estarmos doentes, precisamos de saber que associações existem, que tratamentos existem e o que vai ser este ‘depois’.” Também na investigação a comunicação pode melhorar. Apesar do esforço que tem vindo a ser feito, “não estamos a chegar a toda a gente”, alerta Ana Sofia Ribeiro, investigadora no i3S. A solução é, segundo a especialista “comunicar de forma mais clara”.

Profissionais também precisam de mais informação

Embora os benefícios do aumento da literacia por parte da população já tenham ficado claros, pouco se tem falado sobre a necessidade de os profissionais estarem melhor informados. Para o diretor do Serviço de Oncologia do Hospital de Santa Maria, Luís Costa, só com mais informação e tempo para a processar é que os hospitais saberão como agir. “É preciso olhar para os dados epidemiológicos”, explica. Ou seja, é preciso saber que cancros surgem em determinadas faixas etárias, em que zonas do país e, por exemplo, quais os recursos que cada local detém. Se se conseguir tirar conclusões dessa informação — que deverá existir devido ao Registo Oncológico Nacional —, poder-se-á agir de forma mais eficaz. “Só haverá medicina personalizada se a gestão também o for”, afirma Luís Costa. O especialista deixa ainda um apelo a todos os cidadãos, chamando-os a darem a sua opinião sobre como são tratados nos serviços, como são seguidos nas especialidades ou se as instalações correspondem às expectativas. “Queremos ouvir-vos”, conclui.

TCED

O que se segue

Tenho Cancro. E depois? (TCED) assinala cinco anos em 2023. São cinco anos a traçar um caminho cujo fim último é dar ferramentas aos portugueses para aumentarem o seu conhecimento sobre o cancro, juntando comunicação social, associações, especialistas e sociedade civil em torno de uma temática que afeta milhares por ano. Ainda há muito a fazer, e o TCED vai continuar a dar voz a todos os que precisam de ser ouvidos, ao mesmo tempo que tenta desmistificar a doença. Em 2023 o projeto regressa à antena da SIC, com debates e reportagens televisivas, artigos aqui no semanário, conferências (denominadas Vamos falar?) que pretendem tocar todas as esferas da oncologia. O próximo Vamos falar? acontece este mês, a 26, e poderá ser acompanhado no Facebook da SIC Notícias. O site www.tenhocancroedepois.pt publica conteúdos semanalmente e o chatbot AVA pode ser consultado no mesmo endereço. Por último, todas as sextas-feiras é enviada uma newsletter com os melhores conteúdos da semana.

FRASES DO EVENTO

“É preciso uma comunicação muito transparente e próxima para que o cidadão se sinta seguro”

Eva Falcão, Presidente do IPO de Lisboa


“A literacia é fundamental para as pessoas saberem o impacto que o meio ambiente e o comportamento diário têm no aparecimento do cancro”

Vítor Neves, Presidente da Europacolon Portugal


“É necessário envolver o cidadão, empoderando-o e fazendo-o participar na decisão”

Margarida Ornelas, Presidente do IPO de Coimbra

TENHO CANCRO. E DEPOIS?

A SIC Notícias e o Expresso lançaram um sitewww.tenhocancroedepois.pt — dedicado ao cancro. O objetivo da plataforma passa por recolher a opinião de médicos, doentes e especialistas sobre os desafios de uma doença que afeta cada vez mais pessoas. O projeto tem o apoio da Multicare e da Novartis, além da colaboração da Liga Portuguesa Contra o Cancro e da Sociedade Portuguesa de Oncologia.

Textos originalmente publicados no Expresso de 9 de junho de 2023