Enquanto dormimos, trabalhamos ou passeamos, há um enorme volume de dados a ser recolhido por sistemas tecnológicos, plataformas e aplicações. Que locais frequentamos, que comportamentos temos, quem são os nossos amigos, como é o nosso trabalho, as férias, ou a saúde, são dados que facilmente saem do nosso controlo quando vivemos ligados à internet, frequentamos as redes sociais ou nos inscrevemos em todos os cartões de fidelização das marcas e serviços que utilizamos.
Um cenário que parece saído de um livro de George Orwell, mas que é hoje uma realidade, fruto da inovação e da evolução tecnológica, e cujo impacto económico, legal e social poderá ser transformador da sociedade. Desde logo, acredita Luísa Loura, “existe um novo incentivo ao consumo e novas formas de concretização de trocas comerciais que pode ser positivo”. Contudo, a diretora da Pordata, projeto da Fundação Francisco Manuel dos Santos, acredita que esta realidade “poderá estar a moldar de forma mais perniciosa a sociedade na componente das ideologias”, disse à margem da conferência “Tecnologias da Informação e o Futuro da Sociedade”, que decorreu esta semana. Questionada sobre a necessidade de regular estas questões, por forma a garantir a ética, a responsável da Pordata manifesta alguma preocupação. “É preciso regulamentar, mas sem impor uma nova censura.”
A ética por detrás de tecnologias como Inteligência Artificial (IA) e Big Data é cada vez mais relevante, mas não tem enquadramento legal específico. E a inovação tecnológica não vai parar, mesmo que a sua adoção pelas diferentes sociedades aconteça a velocidades distintas. “Temos que perceber as consequências da adoção destas tecnologias no nosso modo de vida, de trabalho, e garantir a segurança”, defende Luís de Melo Jerónimo. Em relação à ética, o diretor do Programa de Desenvolvimento Sustentável da Fundação Calouste Gulbenkian, que participou na mesma conferência, defende que esta luta deverá começar na qualidade dos dados que suportam as decisões tomadas pelos sistemas de IA. “Assegurar a qualidade dos dados e os princípios éticos de diversidade é essencial.”
Sendo os governos responsáveis pela recolha de grande quantidade dos dados pessoais, e também utilizadores da informação gerada por eles, devem também ser o regulador do seu uso corporativo e garantir a proteção e a privacidade dos cidadãos. Segundo a Deloitte, mais de cem países já dispõem de alguma legislação a este nível, mas há ainda um enorme caminho a percorrer. Em muitos casos, este trabalho está a ser feito em conjunto com grandes empresas, também elas grandes coletores de dados. O objetivo visa uma utilização mais responsável da tecnologia e um controlo sobre o impacto do desenvolvimento das ferramentas de IA.
Cibersegurança versus cibercrime
Outra questão fundamental para evitar a recolha e utilização de dados de forma indevida é a cibersegurança. Desde o início do ano, assistimos a um conjunto de ataques mediáticos a sistemas informáticos em Portugal, que refletem a tendência de crescimento destes episódios em todo o mundo, e cujo objetivo passa por obter avultados proveitos com o resgate ou a venda de dados. Veja-se o caso do jovem de 16 anos, agora detido por fazer parte do grupo Lapsus, que se acredita ser responsável pelo ataque aos sites da Impresa, incluindo o do Expresso. Segundo a BBC, “White” ou “Breachbase”, pseudónimos usados pelo jovem, terá alegadamente acumulado uma fortuna de €12,7 milhões. O mesmo grupo, composto por jovens entre os 16 e os 21 anos, foram também responsabilizados pelos ataques ao site do Parlamento e aos sistemas do grupo Germano de Sousa. Esta semana, foi a vez da Sonae anunciar que teria sido alvo de ataque.
A tendência de crescimento do cibercrime reflete a apetência pelos dados e a sua importância num mundo cada vez mais tecnológico. A digitalização acelerada pela pandemia expôs ainda mais empresas e negócios a estes riscos, o que abre as portas a novos desafios no desenvolvimento de tecnologias — como IA ou machine learning —, que podem ser determinantes para comportamentos sociais. Desafios que reforçam o papel da ética na inovação tecnológica e no seu impacto na sociedade do futuro.
O peso dos dados
60%
é a percentagem de crescimento da margem operacional de um negócio quando suportado numa estratégia de dados e IA, segundo a McKinsey
9,7
mil milhões é o volume de registos de dados perdidos ou roubados a nível mundial desde 2013
1/5
dos dados mundiais são gerados pela China. Em 2021 foram produzidos 2 mil terabytes de dados por minuto
Frases da conferência
“Regulação dos princípios éticos? Preocupa-me que bloqueie o pensamento individual”
Luísa Loura
Diretora da Pordata
“É preciso regulamentação, mas ela própria levanta questões que não estamos preparados para responder”
João Viana Ferreira
Partner da NTT DATA Portugal
“Se traduzirmos o pensamento humano em algoritmo, o resultado levantará questões éticas”
Joe Paton
Diretor de Neurociências da Fundação Champalimaud
“Bancos de dados têm que garantir qualidade e refletir princípios éticos e de diversidade”
Luís Jerónimo
Diretor de Desenvolvimento Sustentável da Fundação Calouste Gulbenkian
Textos originalmente publicados no Expresso de 1 de abril de 2022