Geração E

Para que servem os fundos europeus? No interior do país ajudam a fixar e a manter empresas

O interior do país é das regiões que mais precisa do apoio de fundos europeus para se desenvolver, modernizar as infraestruturas e conseguir manter o seu tecido empresarial. Ainda assim, mais de metade dos portugueses não consegue indicar um projeto português que tenha beneficiado de fundos europeus. Da Beira Interior ao Alentejo Central, o Expresso foi conhecer três projetos sediados no interior que beneficiaram da ajuda de Bruxelas

Com quase cem anos, a Ecolã é uma fábrica têxtil situada no coração da Serra da Estrela. Os fundos de Bruxelas permitiram o impulso internacional da marca.
Azevedo & Castro

Desde a saúde até a uma pequena empresa, os fundos comunitários estão presentes em mais locais do aquilo que se possa supor. Portugal ficaria pintado de azul se fossem assinalados todos os locais que beneficiaram de fundos da União Europeia (UE). No interior do país, esta realidade seria ainda mais notória, desde o projeto ‘Aldeias Históricas’, recuperadas desde 1994 através de fundos europeus, até ao Centro Hospitalar Tondela, em Viseu, que contou com o apoio financeiro para o alargamento e remodelação dos serviços de urgências.

Em 2015, 91% dos portugueses não conseguia indicar um projeto financiado pela UE, enquanto em 2021, a percentagem situava-se nos 74%. Embora o desconhecimento sobre a aplicação deste tipo de fundos, Portugal é o terceiro país com mais projetos financiados por Bruxelas. Desde 2014, já foram apoiados mais de 170 mil projetos, segundo a plataforma Kohesio da Comissão Europeia.

Um dos projetos apoiados situa-se no coração da Serra da Estrela. Durante vários anos, esta serra na região da Beira Interior foi um importante polo da indústria têxtil. Em Manteigas, no distrito da Guarda, a Ecolã é uma das últimas fábricas que conserva esta herança. Criada em 1925, a mais antiga unidade produtiva artesanal portuguesa mantém tradicional o fabrico do burel, um tecido obtido através da lã e típico da região serrana.

Na última edição do Índice Sintético de Desenvolvimento Regional referente a 2021, a região da Beira Alta era a quinta pior a nível da competitividade. Um aspeto que a Ecolã se esforça para manter ao longo de quase cem anos de existência, em especial através do mercado externo, que garante a viabilidade financeira da fábrica. “Nós [Portugal] não temos dimensão para determinado tipo de produtos sem internacionalizar”, explica o gestor comercial da empresa, António Fonseca Costa.

Atualmente, a Ecolã conta com duas lojas, uma em Lisboa e outra no Porto, em que as maiores alturas de vendas são os meses de verão: julho, agosto e setembro. “Normalmente, não vendemos aos portugueses nessa altura e temos alguns clientes reincidentes porque perceberam a qualidade do produto. O produto 100% lã é em alguns mercados, nomeadamente o mercado alemão, um produto de luxo”, diz.

Máquinas utilizadas na produção do burel na fábrica da Ecolã, em Manteigas.

Com o objetivo de impulsionar a marca e abrir novas portas no estrangeiro, a Ecolã candidatou-se ao Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional (FEDER), um dos mais comuns em Portugal. Entre 2015 e 2018, beneficiariam deste apoio que permitiu o acesso a feiras e eventos internacionais. “Estes fundos são fantásticos, a pena é haver muita rigidez na utilização dos mesmos”, confessa Fonseca Costa, que compreende que alguma desta rigidez se deva a uma necessidade de evitar que haja corrupção.

“Havia um evento interessante no Japão, que depois devido a uma parceria estratégica com um cliente, resolvi não ir porque senão ia fazer concorrência ao meu cliente”, explica o gestor comercial, que lembra que essa decisão significou não receber cerca de 15 mil euros. Ainda assim, considera que existiram mais vantagens do que desvantagens. Fonseca Costa admite que, mesmo com as dificuldades no processo, estão a ponderar candidatar-se a um fundo para promover a transição energética.

Linguagem técnica e falta de divulgação são os maiores entraves no acesso aos fundos europeus, mas as vantagens continuam a superar

“Na realidade, não existe apenas um Portugal antes e depois da adesão à União Europeia, como também existe um Portugal antes e depois da aplicação dos fundos europeus no país, que começaram ainda antes do país aderir oficialmente em 1986”, explica Alice Cunha, professora de relações internacionais na Universidade Nova de Lisboa e investigadora sobre a integração de Portugal na UE e a aplicação de fundos comunitários. O poder transformador no país tem sido evidente ao longo dos anos. Inicialmente, a quase totalidade do investimento inicial serviu para melhoria de infraestruturas, enquanto que atualmente as áreas são mais diversificadas.

A investigadora salienta que entre 1986 e 2022, Portugal recebeu mais de 133 mil milhões de euros e apenas contribuiu para o orçamento comunitário com cerca de 52 mil milhões.

“Desde o Tratado de Roma que os Estados-membros fundadores estavam preocupados em fortalecer a unidade das suas economias e também em assegurar um desenvolvimento harmonioso que reduzisse, inclusive, as diferenças existentes entre as várias regiões desses Estados-membros”, diz e acrescenta que existem vários apoios a empresas de pequena e média dimensão que auxiliam ao nível do desenvolvimento de infraestruturas, adaptação a inovações, formação e ao nível técnico.

Quando um projeto não é financiado na totalidade, a empresa tem de ser capaz de garantir que tem capital e meios suficientes, o que pode constituir um entrave. Outra dificuldade trata-se do uso de linguagem excessivamente técnica e que, por isso, existem empresas especializadas em ajudar o cidadão ou a empresa a descodificar o processo europeu.

A professora também destaca a falta de divulgação destes financiamentos, que começa a ser invertida. “O atual governo voltou com uma decisão de divulgar os concursos nos meios de comunicação social, nomeadamente na imprensa, para que também eles cheguem, mais facilmente, aos destinatários pretendidos”, diz Alice Cunha.

Para ultrapassar os obstáculos no processo de candidatura dos fundos comunitários, a Air Dream College, uma escola de aviação dividida entre Lisboa e Évora, precisou de auxílio. “Tivemos a ajuda de uma pessoa que eu conhecia, que já tinha trabalhado com fundos europeus, e ela ajudou-nos em termos burocráticos”, explica o diretor financeiro, Nuno Anjos. O processo de obtenção dos fundos, embora demorado e burocrático, “correu bem”.

Alcançar a excelência mais rapidamente é um objetivo impulsionado pelos fundos comunitários

A escola de aviação certificada pela Autoridade Nacional de Aviação Civil nasceu de uma parceira entre Nuno Anjos, Aurélio de Almeida, Tenente-Coronel Navegador da Força Aérea Portuguesa reformado, e Ivan Duarte, piloto instrutor e oficial de operações de voo. Em 2019, criaram a Air Dream College, a primeira escola europeia de aviação a lecionar o curso em sistema B-Learning, ou seja, os alunos têm a flexibilidade de assistir em direto e online às aulas e organizar a aprendizagem ao seu ritmo.

Com o polo teórico em Lisboa e o prático no aeródromo de Évora, os fundos de Bruxelas permitiram construir dois simuladores de aeronaves na escola situada no Alentejo Central. Quando iniciaram a escola foi preciso construir hangares para guardar os aviões e poder ter um espaço de manutenção, adquirir os próprios aviões e os simuladores. “Tudo isso eram investimentos muito volumosos para quem não tem ninguém por trás, para quem apenas tinha um sonho”, diz Nuno Anjos. Por este motivo, decidiram recorrer a um investimento para a inovação, graças ao qual desafiaram uma empresa portuguesa que construía simuladores para o estrangeiro a fazer um novo modelo para a Air Dream College.

“Uma escola de aviação não pode viver sem simuladores, por uma questão de ambiente por exemplo, porque é combustível que não se gasta, é poluição que não há, e porque a aprendizagem é muito mais completa se iniciarmos pelos simuladores. Ou seja, um piloto leva muito tempo a formar, e se esse tempo for colmatado com a parte da simulação, em que ele, depois, quando for para o avião, já tem as noções daquilo que vai fazer, é muito mais fácil”, explica Aurélio de Almeida.

Um dos simuladores financiados por Bruxelas.

Não teríamos evoluído tão rápido [sem os fundos], provavelmente, porque não tínhamos o dinheiro para investir tão rapidamente”, diz Nuno Anjos acerca do impulso proporcionados pelos fundos comunitários. A vontade é continuarem a concorrer a estes apoios, caso abra um fundo destinado à internacionalização vão candidatar-se por acreditarem que Portugal, devido às suas condições, poderia “ser o país da Europa a formar mais pilotos na Europa e em todo o mundo”, o que faria a escola destacar-se da concorrência que são, precisamente, os outros Estados-membros.

A ambição em alcançar a excelência é auxiliada pela localização do aeródromo na capital da região centro-sul do país. “Escolhemos Évora por dois motivos: um por causa da meteorologia, porque voamos quase 85% do ano, e outro por causa do facto de entramos em pista rapidamente. Portanto, se estivermos num aeródromo com muito movimento, a entrada em pista é feita em 25 minutos normalmente, enquanto nós entramos em cinco minutos, são 20 minutos que o aluno está no ar e não está no chão à espera de entrar em pista”, explica Nuno Anjos. Ainda assim, confessam que já consideraram inúmeras vezes sair do interior devido à falta de apoio que sentem da Câmara Municipal, em especial relativamente às poucas oportunidades de alojamento para os alunos.

Hangar da Air Dream College no aeródromo de Évora.

Ao longo dos quatro anos de existência, já tiveram propostas para mudar as instalações, que recusaram sempre devido ao desejo de tornar Évora um polo de manutenção para pequenas aeronaves e por contarem com 28 empregados a tempo inteiro, que vivem, na sua maioria, no Alentejo.

“Apesar de Évora estar a 50 minutos de Lisboa, ainda falta muita coisa. Olha-se muito para determinados projetos que, sem dúvida, são necessários, mas estão a ser esquecidos outros projetos. O desenvolvimento do interior não é só com a agricultura, não é só com a vinha, não é só com a pecuária. É o desenvolvimento também em termos industriais, porque isso também dá muita empregabilidade”, afirma Aurélio de Almeida. Os fundos europeus desempenham um papel importante neste sentido ao permitir o investimento em projetos de outras áreas.

Fundos comunitários ajudam a fixar empresas do interior do país

“O tecido empresarial português ainda continua a ser constituído, sobretudo, por pequenas e médias empresas. Todas enfrentam o mesmo tipo de dificuldade, sendo que, obviamente, as do interior enfrentam as mesmas dificuldades, mas com outro grau, inclusive devido à localização”, explica a professora Alice Cunha. Embora as dificuldades acrescidas, também “podem beneficiar mais precisamente porque estão em zonas menos desenvolvidas”.

No caso do Portugal 2030, um acordo entre o país e a Comissão Europeia de um investimento total de quase 23 mil milhões de euros em objetivos estratégicos, está programado investir metade do valor no Fundo de Desenvolvimento Regional, cujo propósito é mitigar os desequilíbrios de desenvolvimento nas regiões, e quase 80% será investido nas regiões menos desenvolvidas.

É em Oliveira do Hospital, uma cidade que integrava a região da Beira Alta, mas que atualmente está inserida na região de Coimbra, que João Nunes decidiu criar a Associação BLC3 – Campus de Tecnologia e Inovação, uma associação sem fins lucrativos de investigação e incubação de ideias e empresas na área da bioeconomia e economia circular.

A ideia surgiu no final de 2009 quando, durante as eleições autárquicas, perguntaram a João Nunes se tinha algum projeto para a região. A ideia “era montar um centro de investigação científica e desenvolvimento tecnológico com o apoio ao desenvolvimento do empreendedorismo. Foi feita uma apresentação para os empresários da região, na altura. Teve um forte acolhimento da parte empresarial, das pessoas, da própria Câmara e depois nasce a partir daí”.

Equipa da BLC3
Filipe Cardoso

Nos primeiros cinco anos, o investimento de Bruxelas foi o grande impulso, uma vez que a BLC3 foi o primeiro centro de investigação que iniciou o seu percurso sem orçamento do Estado. “Quando se desenvolve conhecimento e tecnologia não se consegue colocar logo no mercado. Ou seja, a capacidade de rentabilizar o nosso trabalho é diferente de alguém que produz o pão e consegue vendê-lo no próprio dia. Quem produz conhecimento não consegue vendê-lo no próprio dia”, exemplifica o presidente da associação.

Os fundos comunitários obrigaram a empresa a desenvolver-se mais rápido e de forma independente, além de permitir “andar sempre fora da zona de conforto para crescer” e ganhar uma “maior capacidade de resiliência”.

Com dois polos na região norte, em Macedo de Cavaleiros e Alfandega da Fé, e outro em desenvolvimento no Alentejo, o “DNA [da BLC3] é o interior”. Para desenvolver a região, a associação estabeleceu desde o início que o objetivo era fixar jovens qualificados. Uma missão que têm conseguido concretizar. Atualmente, a média de idades é de 29 anos nos mais de 130 postos de trabalho e onde cerca de metade é do interior do país.

“Em Lisboa e no Porto seríamos mais um”, explica João Nunes que acrescenta que a ciência, a tecnologia e a inovação são “alguns dos principais fatores ou instrumentos para a desenvolvimento dos territórios”.

Mais recentemente, obtiveram financiamento europeu para mais de dez projetos na associação. Também conseguiram com um apoio estatal em 2023 para contratar recursos humanos, mas este tipo de investimento é mais raro. “Se estivéssemos em Lisboa, havia projetos que já tinham sido apoiados há muito mais tempo. Os maiores problemas e as barreiras que enfrentamos foi sempre de não nos quererem dar o reconhecimento que o internacional e o europeu nos deram”, diz ao destacar o prémio ‘RegioStars’ atribuído pela Comissão Europeia.

É fascinante ver até que ponto o país está, na realidade, ligado ao financiamento europeu”, afirma Alice Cunha. Para o interior do país, os fundos comunitários têm desempenhado um papel preponderante, considerando que esta região beneficiou, em 2021, de 40% deste financiamento europeu. A professora universitária alerta ainda que “seria muito difícil atualmente substituir este tipo de financiamento por outro, porque é uma parte muito importante de financiar diferentes políticas públicas no país”.