Geração E

“Não há assuntos mais importantes a falar do que os direitos das mulheres?” E se eu lhe disser que está tudo interligado?

As mulheres representam 50% da população mundial, mas levam às costas o peso da Humanidade. E como é que a sociedade global lhes agradece? — Observações a nível nacional e internacional sobre a interseção de problemas geo-políticos, económicos e sociais

Poderia centrar esta crónica na frase “uns problemas não anulam os outros”, mas a realidade é bem mais complexa do que isso. Acho muito curioso quando leio algum comentário que diz algo como “mas e a crise da habitação?”, quando a notícia é, por exemplo, sobre uma desigualdade de género. Ora, se por um lado, em termos governamentais, nem sequer se trata do mesmo departamento de ação, podendo-se tratar dos dois problemas ao mesmo tempo; por outro, os dois temas intercetam-se. O mesmo acontece com outras crises sociais e humanitárias. Este texto de opinião pretende tornar isso visível, através de alguns exemplos.

Comecemos por um dos acontecimentos mais recentes: a crise humanitária na faixa de Gaza. A ONU estima que haja 50 mil mulheres grávidas na população palestiniana na faixa de Gaza. Já não bastava terem recebido um aviso de morte iminente, agora imagine-se o que é passar por isso estando grávida.Imagine-se o que é estar grávida em qualquer contexto de guerra. Uma guerra que em nada tem a ver connosco.

Ainda olhando para o panorama internacional, vemos o acesso à educação, depois do Ensino Primário, negado às raparigas no Afeganistão. Desta forma, a ditadura talibã procura impedir a independência das mulheres, quer monetária, quer de liberdade de pensamento. Informação é poder e esta medida só comprova que eles sabem disso. Felizmente, mas a risco próprio, as mulheres estão a fazer frente a esta arbitrariedade com escolas clandestinas.

Voltemo-nos, agora, para a área da saúde, indispensável para o bem-estar da população. Os dados do Parlamento Europeu, em 2021, na linha da frente da Covid-19, estimam que 76% dos profissionais de saúde são mulheres. Isto já para não falar de que, com as famílias em casa, em pandemia, as mulheres viram a sua carga de trabalho doméstico intensificar-se, o que só mostrou, mais uma vez, que a divisão das tarefas domésticas em famílias de casal heterossexual é, ainda, na generalidade, muito desigual.

Ainda nessa altura, não eram permitidos acompanhantes nos partos. Tínhamos, então, as mulheres (cis) sozinhas a dar à luz. Nem consigo imaginar o impacto emocional e físico de parir numa sala sem ninguém que me é próximo ao meu lado. Dentro da questão da gravidez, mas do outro lado da moeda, houve ainda mais entraves no acesso a interrupções voluntárias da gravidez.

De um modo geral, se nos voltarmos para as profissões maioritariamente ocupadas por mulheres, somos assoberbados e assoberbadas pelas consequências sociais e económicas que tal realidade traz para as mulheres. Para além da quantidade imensa de profissionais de saúde mulheres, 95% dos empregados de limpeza e auxiliares domésticos são mulheres. Ora, em situações pandémicas ou de crise económica, são estes empregos que ficam logo em risco, seja por razões de isolamento ou para corte de gastos. Por consequência, em quem recai esse trabalho extra? Outra vez nas mulheres da família. Ainda, grande parte das empregadas de limpeza e auxiliares domésticas trabalham em regime precário: não têm contrato de trabalho, nem seguro de saúde, nem tampouco têm os seus rendimentos declarados devidamente.

Além disso, 93% do total de educadores de infância e professores são mulheres. Não é difícil de perceber que as/os professores não têm condições de trabalho dignas, graças às suas inúmeras e fundamentadas greves e manifestações nos últimos tempos. De entre as queixas, temos o congelamento de carreira, a não redução de horários, o acumular de funções.

Se nos virarmos para a questão da pobreza menstrual, chegamos à conclusão que há muitas mulheres cis e pessoas que menstruam que não têm dignidade menstrual: não têm poder económico para comprar produtos de recolha menstrual. Esta é uma realidade tanto em países mais pobres, como nas escolas à sua volta. Por muito que cada vez se fale mais na sustentabilidade menstrual, ainda pouco se fala da prioridade acima de tudo: garantir dignidade menstrual, ou seja, ter produtos de recolha, sejam reutilizáveis ou descartáveis.

É incrível como as mulheres continuam a ganhar menos com os mesmos cargos que os homens, mas a ter mais gastos. Se ainda duvida que haja uma diferença salarial entre mulheres e homens, veja este resumo das conclusões a que chegou Claudia Golbin, vencedora do Prémio Nobel da Economia de 2023. A nível mundial, há uma disparidade grande entre a presença das mulheres e dos homens no mercado laboral, e, quando trabalham, as mulheres ganham, efetivamente, menos do que eles nos mesmos cargos — surgindo este gap com o nascimento do primeiro filho. Outra das várias conclusões a que chegou é que as decisões tomadas pelas mulheres em matéria de educação têm impacto nas oportunidades de carreira (ou as decisões que tomam por elas, no caso de lhes negarem o acesso à educação).

A estas realidades que tornam a precariedade uma realidade mais próxima para as mulheres, dentro da binomia de género, acrescentamos a crise na habitação. Focar-me-ei em Portugal. Olhemos para as famílias monoparentais: 80% das vezes são suportadas pelas mães. Já não bastava haver a possibilidade de ganhar menos, é também a única a trazer um ordenado para casa e a ter de suportar o crescimento exacerbado das rendas.

Concluindo, as mulheres (cis) representam 50% da população mundial, mas levam às costas o peso da Humanidade. E como é que a sociedade global lhes agradece? Com o gap salarial, guerra, más condições para a gravidez e parto, pobreza menstrual, aumento das rendas, obstáculos no acesso à educação, falta de apoio para as famílias. Que bem. Parabéns pela ironia de mau gosto.

Nota: O texto contempla a realidade de mulheres cis e homens cis. A questão da precariedade piora quando se fala de pessoas trans.