Portugal vai a tribunal esta quarta-feira, 27 de setembro. O caso dos seis jovens portugueses que acusam 33 países de não fazer o suficiente para combater as alterações climáticas e, dessa forma, porem em causa os seus Direitos Humanos vai ser ouvido no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH), em Estrasburgo.
Se Portugal perder o caso, as sentenças deste tribunal são vinculativas. Isto significa que o governo pode ter de alterar a legislação e as suas práticas administrativas para dar resposta às queixas.
E neste caso, escreve a investigadora Teresa Violante num artigo de opinião publicado pelo Expresso, “tudo o que alegam está não só suportado em ampla evidência científica como é repetidamente ecoado nas posições políticas, com maior ou menor intensidade, de vários dos governos dos Estados que são demandados no processo, a começar pelo português.”
Não é a primeira vez que o TEDH decide em favor dos queixosos em questões relativas ao ambiente. E o que ficar decidido pode vir a servir de jurisprudência a outros casos deste género.
1.
Mas que instituição é esta afinal?
O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) é uma instituição internacional e assegura o respeito da Convenção Europeia dos Direitos do Homem nos 46 estados que a ratificaram. Tem assim o poder de condenar os países que incorrem em violações dos direitos civis e políticos convencionados.
Trata-se de uma das instituições do Conselho da Europa (CoE), a mais antiga instituição europeia, que atua como o guardião dos Direitos Humanos no continente europeu.
Portugal é membro do CoE desde 1976, tendo ratificado a Convenção (e estando assim sujeito à jurisdição do TEDH) há mais de 40 anos.
O TEDH foi fundado em 1959 e reúne-se de forma permanente desde 1998. Tem sede no Palácio dos Direitos do Homem, em Estrasburgo, França.
Este não é uma instituição da União Europeia e não deve ser confundido com o Tribunal de Justiça da UE ou com o Tribunal Internacional de Justiça, sob jurisdição das Nações Unidas, em Haia.
2.
Que direitos estão consagrados na Convenção?
A Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (ou como é mais comumente referida, Convenção Europeia dos Direitos do Homem) é um tratado internacional adotado em 1950 pelos estados-membros do CoE.
O documento - em vigor desde 1953 - garante os direitos fundamentais, civis e políticos, não só a todos os cidadãos dos 46 estados-membros como também a qualquer pessoa sob a sua jurisdição. Nomeadamente, garante:
- direito à vida;
- direito a um processo equitativo;
- direito ao respeito pela vida privada e familiar;
- liberdade de expressão;
- liberdade de pensamento, de consciência e de religião;
- direito à proteção da propriedade.
Sob a Convenção estão também proibidas todas as formas de:
- tortura e penas ou tratamentos desumanos ou degradantes;
- escravatura e trabalho forçado;
- pena de morte;
- detenção arbitrária e ilegal;
- discriminação no gozo dos direitos e liberdades reconhecidos pela convenção.
A Convenção tem também a evoluir através da adoção de 14 protocolos adicionais, “sobretudo graças à interpretação das suas disposições pelo TEDH”. Explica o próprio TEDH: “Através da sua jurisprudência, o Tribunal transformou a Convenção num instrumento vivo, alargando assim os direitos garantidos e permitindo a sua aplicação a situações que não eram previsíveis aquando da adoção da mesma.”
Esta não deve ser confundida com a Declaração Universal dos Direitos do Humanos (ONU) ou a Carta dos Direitos Fundamentais (EU).
3.
Como funciona o tribunal?
O Tribunal é constituído por um número de juízes igual ao total de estados-membros (que são 46 desde março de 2022, quando a Rússia foi expulsa após invasão da Ucrânia). Os juízes nacionais são eleitos pela Assembleia Parlamentar do CoE (no qual Portugal está representado por sete deputados) com base em lista de três nomes apresentados por cada país.
A juíza portuguesa é atualmente Ana Maria Guerra Martins. Está em funções desde 1 abril de 2020 e deverá cumprir um mandato não renovável de 9 anos.
Os casos submetidos aos TEDH podem ser apreciados de quatro formas: por um juiz singular (quando queixas são manifestamente inadmissíveis), por um comité de três juízes, por uma Câmara de sete juízes e, excecional por um tribunal pleno (17 juízes).
4.
Como é que casos chegam a tribunal?
Existem dois tipos de queixas que chegam ao TEDH. As individuais (em que qualquer pessoa, grupo de particulares ou ONG recorre diretamente ao Tribunal caso considere que os seus direitos foram violados) e as interestaduais (em que um Estado avança com queixa contra outro)
O tribunal não pode por iniciativa própria iniciar qualquer processo e, historicamente, a maioria dos casos partem de queixas individuais.
Os processos têm de necessariamente ser queixas contra um ou mais estados-parte da Convenção (não se julgam casos contra pessoas, outras instituições ou estados terceiros).
Os processos têm duas fases: a de apreciação da admissibilidade (examina se caso cumpre requisitos para ser analisado por tribunal) e a apreciação do fundo (examina alegadas violações). Se caso for declarado inadmissível, não é possível recorrer.
Um processo só é considerado admissível se:
- foram esgotadas todas as vias de recurso no país contra quem alega violações;
- a queixa for referente à violação de um ou mais direitos consagrados na convenção;
- a queixa for apresentada até quatro meses após instância mais alta do país se ter pronunciado sobre caso;
- o requerente for pessoal e diretamente vítima da alegada violação e tenha sofrido “prejuízo significativo”.
O processos são geralmente escritos. No entanto, o tribunal pode decidir realizar audiências públicas (como é o caso deste processo contra Portugal). Nestes casos tanto a imprensa como o público podem estar presentes e há transmissão online. O tribunal delibera posteriormente em privado.
5.
Que caso é este dos jovens portugueses?
Esta quarta-feira, Portugal (e outros 32 países) vão responder numa audiência em Estrasburgo por uma queixa individual (neste caso avançada por um grupo de seis jovens entre os 11 e 24 anos) num tribunal pleno. O caso, que deu entrada a 7 de setembro de 2020, foi considerado prioritário, movendo-se assim mais rapidamente.
O processo judicial foi preparado pela Global Legal Action Network (GLAN), uma organização sem fins lucrativos presente na Irlanda e na Inglaterra, dedicada a dar forma a ações legais inovadoras que se insurjam contra violações de direitos humanos.
Os jovens alegam que os incêndios florestais que têm ocorrido anualmente em Portugal desde 2017 são um resultado direto das alterações climáticas. E que estes resultam em riscos para a sua saúde. Dois dos jovens argumentam que as fortes tempestades de inverno, também resultantes da crise climática, põem em risco a sua habitação.
Assim, acusam os 33 países de violações de vários artigos da Convenção, nomeadamente do direito à vida e ao respeito pela vida privada e familiar e à proibição de tratamentos desumanos e descriminação (por a sua geração ser mais afetada).
Dos documentos do processo, constam também as observações do Estado português apresentadas junto ao TEDH. Portugal argumenta que a queixa se centra em “receios futuros, constituindo apenas meras suposições ou probabilidades gerais.”
6.
Este é o primeiro caso judicial sobre alterações climáticas?
Não. Apesar da Convenção não incluir o direito a um ambiente saudável, o TEDH tem sido chamado a litigar sobre vários casos que envolvem danos e riscos ambientais que ponham em causa outros direitos previstos na Convenção.
Os casos envolvem uma ampla panóplia de problemas ambientais, desde atividades industriais perigosas, despejo de lixo tóxico, exposição a radiação nuclear e naturais desastres.
À semelhança do caso português, há outros dois casos à espera de serem ouvidos relativos às emissões de gases com efeito de estufa. Um deles foi levantado contra a Suíça por um grupo de 2.400 idosas que se queixa que as políticas do país sobre o clima põem em causa a sua saúde, nomeadamente durante as ondas de calor. A outra queixa é do ex-autarca de Grande-Synthe, que acusa França a não fazer o suficiente para prevenir as alterações do clima.
Mas não é só no TEDH que a via judicial é cada vez mais procurada para procurar respostas às alterações climáticas. A Global Climate Litigation Report 2023 (da ONU) contabiliza 2180 casos em 65 jurisdições. Já as bases de dados do Climate Case Chart contabilizam 1648 casos nos EUA e 783 nas jurisdições de outros 55 países.
7.
Quantos casos são julgados em Estrasburgo?
A jurisdição do TEDH abrange 800 milhões de europeus nos 46 estados-membros.
Até ao final de agosto, o caso tinha 78 mil queixas pendentes e 25.900 casos alocados. Tinham sido emitidas decisões em 20.805 casos.
Segundo os números da própria instituição, há dois países contra quem se dirigem mais de metade dos casos pendentes: a Turquia (31,7%) e a Rússia (19,7%). A Ucrânia surge em terceiro (12,2%).
No ano passado, o TEDH notificou o governo português de 69 novas queixas contra Portugal. A maioria (47) diz respeito à violação da proibição de tortura, tratamentos cruéis e degradantes e direito a um recurso efetivo.
8.
Que casos mais se destacaram?
O TEDH tem deliberado vários casos marcantes ao longo dos anos, nomeadamente relativos à crise migratória na Europa.
Em 2022, por exemplo, condenou a Grécia por falhas na resposta a um naufrágio que matou 11 migrantes. Em 2020, julgou a Turquia no primeiro caso que analisou o reenvio forçado de um migrante.
A questão do reenvio de migrantes é um dos pontos de tensão atuais com o Reino Unido. No ano passado, o tribunal interveio para travar os polémicos voos para o Ruanda e este ano o primeiro-ministro chegou mesmo a admitir sair da Convenção caso o TEDH se pronuncie sobre a nova lei migratória.
Nos próximos tempos, é também provável que o TEDH seja chamado a decidir sobre variados casos relacionados com a guerra na Ucrânia. Apesar da expulsão, o TEDH conservou jurisdição durante seis meses (até setembro de 2022).
Mesmo antes da guerra, a Rússia foi alvo de várias condenações. O TEDH chegou, por exemplo, a ordenar a libertação de Alexei Navalny. Em casos semelhantes, a Turquia continua a desobedecer às sentenças que decretam a libertação do filantropo Osman Cavala e do líder curdo Selahattin Demirtas (detido desde 2016 e com caso ganho no TEDH em 2020, continua preso).
Relativamente às queixas apresentadas contra Portugal, há vários casos mediáticos, nomeadamente ligados às mortes durante a praxe na praia do Meco, à queixa dos McCann contra o livro do ex-inspetor Gonçalo Amaral, ao caso Casa Pia e ao acidente de Camarate.
Há também um número significativo de casos relativos ao Artigo 10.º (que protege a liberdade de expressão). Estes envolvem políticos, órgãos de comunicação social, jornalistas e clubes de futebol (entre outros).