A escritora Natália Nunes, nascida em 1921, foi autora de uma vasta obra e colaboradora da revista "Seara Nova", ano que esta publicação foi fundada. Na última semana do ano que assinala o centenário do seu nascimento, Teresa Sousa de Almeida, investigadora do Instituto de Estudos de Literatura e Tradição (IELT), diz em entrevista ao Expresso que "Horas Vivas. Memórias da minha Infância", o primeiro livro da mulher que se casou e partilhou a vida com o poeta António Gedeão, "é um livro extraordinário que devia ser dado a ler, hoje, nas escolas".
Para esta investigadora, que foi professora Associada da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova, a reedição da obra de Natália Nunes, que está esgotada, deveria "começar pelo primeiro livro", apesar de o romance "Autobiografia de uma Mulher Romântica" (publicado em 1954) também ser "uma boa introdução à obra desta escritora". "Escrito na primeira pessoa, apresenta-nos uma heroína que foge de um grande desgosto, conseguindo, apesar de tudo, prosseguir a sua vida. Encontramos descrições fabulosas da natureza e análises psicológicas notáveis. A vida miserável das mulheres dos pescadores é sumariamente descrita. É um livro intimista, lírico e simultaneamente realista, uma obra-prima da literatura portuguesa dos anos 50".
Natália Nunes, falecida em 2018, era irmã do artista plástico António Alfredo e mãe da escritora Cristina Carvalho, filha do seu casamento com Rómulo de Carvalho, o professor que era o casulo do poeta António Gedeão.
Passou parte dos últimos anos a investigar a obra literária de Natália Nunes. Porque é que ela é uma escritora tão esquecida?
Em primeiro lugar, porque quando começou a escrever, nos anos 50 do século XX, Natália Nunes sofreu o destino das mulheres. Como escreve Ana Paula Ferreira, no seu magnífico livro "A Urgência de Contar", as escritoras que não se integram nos movimentos dominantes do seu tempo – o Neo-Realismo e a Presença – são imediatamente classificadas na categoria da "literatura feminina", que é uma forma de marginalização. No entanto, Natália é muito mais esquecida do que a maioria das suas contemporâneas, sobretudo se tivermos em conta a sua obra monumental e a qualidade da sua escrita.
Há outros motivos para este apagamento?
Os seus primeiros livros receberam críticas muito injustas na revista "Vértice", defensora de uma literatura comprometida com a luta contra o Estado Novo. São recensões muito injustas, mesmo do ponto de vista dos seus detratores, porque os livros de Natália Nunes não são panfletários, deixam transparecer uma crítica inteligente e subtil ao salazarismo, que é preciso saber ler nas entrelinhas.
A escrita dela é uma afirmação do feminino?
Natália Nunes é uma escritora feminista: as suas heroínas não se deixam abater por desgostos amorosos, obstáculos e perdas: seguem o seu caminho, apesar do seu sofrimento e de todas as dificuldades que enfrentam. Em quarto [e último] lugar, o silenciamento de Natália Nunes explica-se pela sua qualidade e pela sua independência: não pertencia a nenhum grupo dominante na imprensa portuguesa. No entanto, por uma questão de justiça, gostaria de destacar os críticos e críticas que não a esqueceram, por terem escrito sobre a sua obra ou por se terem interessado pela sua escrita singular. Destacaria, no seu tempo, os artigos de Gaspar Simões, João Pedro de Andrade, Liberto Cruz, Manuel Poppe e Mário Sacramento e, mais recentemente, Eduardo Pitta, Isabel Cristina Mateus, Joana Marques de Almeida, Margarida Neves e Maria Alzira Seixo.
"Assembleia de Mulheres" é um marco na afirmação da palavra feminina?
"Assembleia de Mulheres" é uma narrativa de vanguarda, constituída por monólogos e diálogos. Faz uma crítica feroz às mulheres licenciadas que trabalham num museu. Hipócritas, limitadas, preconceituosas, movidas por invejas mesquinhas, o retrato desolador dos reflexos do salazarismo na mentalidade feminina da pequena burguesia que vive das aparências e é profundamente infeliz. Uma das personagens, Vera Alexandrina - que, por ter trabalhado no estrangeiro e ter uma mentalidade aberta -, desconstrói esse universo sufocante, retrato de um Portugal parado no tempo. Muito criticada pelas colegas de trabalho, que não aceitam a sua liberdade e a sua abertura, a personagem irá deixar o museu, dirigido por um homem incompetente e tacanho.
É a obra mais feminista da autora, ou é outra?
O livro mais feminista de Natália Nunes, digamos assim, é "Regresso ao Caos", de 1960. Conta a história da descoberta da vocação de Matilde, uma pintora que ousa retratar-se nua, perdendo, por isso, o noivo e a herança da madrinha. O romance não foi bem recebido por João Gaspar Simões, um dos críticos que mais admirava a obra da escritora....não conseguiu suportar o caráter libertário e subversivo da obra, que deveria figurar como um marco importante na história do feminismo em Portugal.
Qual o seu livro preferido da autora?
É difícil responder, porque todos os livros são diferentes e pertencem a vários registos. Podem ser líricos, trágicos, cómicos, satíricos, mordazes ou irónicos. Natália Nunes é uma escritora versátil e plurifacetada. Nunca se repete. O meu conto preferido é "Clastomina", que está integrado na antologia "Da Natureza das Coisas", de 1985. A personagem principal é uma empregada doméstica, anã, que se despreza a si própria pela sua deficiência e pela sua profissão. Do meu ponto de vista, é uma das melhores narrativas da literatura portuguesa do século XX, pela sua força e pela sua originalidade.
Que leitura faz de "Horas Vivas", o primeiro livro da autora, onde Natália evoca as memórias dos três anos que viveu em Oliveira de Frades em criança?
É uma obra-prima. Prefiro dar, primeiro, a palavra a Mário Sacramento, o grande crítico neorrealista, que foi, na época, quem melhor compreendeu a obra de Natália Nunes: "Tenho uma especial predileção pelo seu primeiro livro (…) Seria uma obra célebre e correria há muito em edição ilustrada por quem o merecesse! Que há, nela, de inferior às memórias da infância de Tolstoi, por exemplo? Por mim, não sei dizê-lo. E pergunto-me onde está, entre nós, um livro que se lhe equipare, no género (…) A luta entre a fé e a razão crítica, o sentido religioso e a sua formalização, a candura e o conhecimento, o sadismo e a abnegação, o recato e a ostentação, o ignoto e a rotina, o real e o ideal, o eu e o mundo, fazem desse belo livrinho um torso embrionário de adolescente, que prenuncia o autorretrato nu da pintora de 'Regresso ao Caos'…". [Acho] que "Horas Vivas. Memórias da minha Infância" é um livro extraordinário que devia ser dado a ler, hoje, nas escolas.
Por que o considera importante para as crianças de hoje?
Fala da visão de uma criança que vai viver para o campo: as descrições da vida das pessoas, dos costumes, do contacto com a natureza e com os animais são inesquecíveis. Revela-nos o mundo encantado, e simultaneamente cruel, da infância, navegando entre o sonho e a realidade, num universo poético que não deixa de refletir o difícil processo de crescimento. Simultaneamente, faz o retrato de uma vila [rural] portuguesa, nas primeiras décadas do século XX.
Quando é que descobriu a escrita de Natália Nunes?
Em 2017, creio eu, fui à Livraria Pó dos Livros, que, infelizmente, encerrou no ano seguinte. Na montra, estava a belíssima edição de "Assembleia de Mulheres", de Natália Nunes, uma escritora que não conhecia. Fiquei fascinada, a olhar para a capa fabulosa de João da Câmara Leme, e comprei o livro. Foi uma paixão imediata. Embora tivesse muito trabalho e fosse especialista do século XVIII, achei que ia dedicar a minha reforma à descoberta desta autora, tão injustamente silenciada. Nunca me arrependi: li a sua obra completa, incluindo os seus excelentes ensaios críticos, e a minha admiração nunca deixou de aumentar.