Web Summit

Web Summit: democratizar o espaço público usando realidade virtual e aumentada

Podem as obras de arte sem existência física ou adjuvadas por novas tecnologias trazer para o discurso coletivo personagens e assuntos outrora condenados ao esquecimento? Eis uma proposta surgida num painel da Web Summit

Alguns dos rostos resgatados ao esquecimento pela artista americana Tamara Shogaolu, com a ajuda de realidade aumentada
D.R.

Num tempo em que se discutem estátuas e monumentos que um dia alguém ergueu para homenagear outro alguém, e se os critérios que presidiram a tais decisões se manteriam hoje, e se devemos mantê-los, retirá-los ou mudá-los de sítio, há quem tenha outra preocupação: assegurar a presença no espaço público e na memória coletiva daqueles que têm tudo para serem esquecidos.

“Pense em mulheres, pessoas não brancas, ou alguém que não seja político, artista ou atleta”, dizia Lisa Osborne numa mesa-redonda organizada no âmbito da Web Summit. A diretora de media emergentes da Black Public Media, organização sem fins lucrativos americana que estabelece contactos entre negros nos mundos das artes e da tecnologia, defende que é preciso “democratizar o espaço público” e acredita que em formas inovadoras para construir uma resposta, incluindo realidade virtual (RV) e realidade aumentada (RA).

Osborne acredita que estes instrumentos podem ajudar a reduzir as barreiras à criatividade, aumentando o número dos autorizados a fazê-la no espaço público e o dos imortalizados nesse contexto. “Contorna-se a forma tradicional de controlo de cima para baixo, pelos governos, que limita o papel da arte enquanto forma de crítica ou protesto.”

Contar todas as histórias

Tudo passa, em última análise, por contar histórias. Osborne pede ao público que pense nos vieses que afetam a escolha quer de homenageados, quer dos artistas contratados para os homenagear. Não a preocupa apenas a questão da cor da pele, mas perguntas como: “Devem os herdeiros de uma figura pública ter de aprovar uma peça sobre essa pessoa? E se ela for viva? Deve a arte pública em RV e RA passar pelas entidades governamentais?

No mesmo painel, a cineasta Tamara Shogaolu falou do projeto Un(re)solved, uma instalação itinerante de RA, a que chama “uma manta de retalhos viva”. Com o apoio do serviço público de televisão PBS, escolheu um formato ligado às tradições dos negros americanos (as mantas de retalhos) para contar, em painéis de 1 a 2 metros de altura, modulares e adaptáveis ao local de instalação, as histórias dos homens, mulheres e crianças negros mortos nos Estados Unidos, cujos casos foram reabertos ao abrigo de uma lei aprovada em 2008 para reconhecer a natureza racista de crimes cometidos no século XX. A lei foi batizada com o nome de Emmett Till, adolescente negro espancado até à morte aos 14 anos, em 1955.

A artista explica que as pessoas passeiam pela instalação, circulam livremente e ficam a conhecer as histórias através de vídeo e áudio. O projeto já passou pelo Battery Park de Nova Iorque, está agora prestes a rumar a Chicago e irá depois a Amesterdão. Tem tido êxito, chegando a haver mais de 20 pessoas ao mesmo tempo num círculo de dois metros de diâmetro.

“Convida a ver os nomes, a percorrer vidas”, explica Shogaolu, que adotou o lema “Dizer os seus nomes, conhecer as suas histórias”. Desenterrar todos os casos requereu a ajuda de uma equipa da Frontline, uma organização de jornalismo de investigação.

“O impacto que isto teve nas famílias bateu-me forte”, afirma a autora. Recorda em particular um senhor cujo pai, assassinado, era um dos evocados. “Ele procurava que houvesse reconhecimento da motivação racista daquele crime. Levou o filho à exposição e apercebi-me de quão intergeracional é este problema. Aquele miúdo de 17 anos tinha sido criado à sombra do assassínio do avô, e de repente pôde ver fotos, ouvir a história!”, conta.

Desafios contínuos

Se no século passado negros norte-americanos vítimas de brancos eram difíceis candidatos a monumentos públicos, o mesmo se diga, no Brasil, de uma mística, escritora e ativista pelos direitos sociais. Beatriz Moreira Costa, conhecida como Mãe Beata de Iemanjá, foi a escolha do artista carioca Fabiano Mixo para “Woman without a mandolin”, de novo a suscitar a Osborne perguntas como “Quem merece ser imortalizado na arte pública?”. No caso, “alguém que nunca seria considerado para grande estátua”, responde.

Inspirado em David Hockney ou Lorna Simpson, Mixo criou uma composição cubista a partir de fotos da homenageada. “Meshmemories” é um retrato em RA "que “explora o arquivo fotográfico de Mãe Beata escolhendo fotos de vários tempos e momentos da sua vida, criando um retrato único tridimensional”. Ao contrário da obra anterior, esta não tem existência física.

É notório que Osborne não tenta vender estas novas formas de arte pública como panaceia para todos os problemas e controvérsias. Enumera mesmo novas questões: “Quem é o dono: os organizadores, os financiadores, o artista ou o seu agente? Quem tem o direito de fazer uma T-shirt ou uma caneca com aquela obra? E, se for material, que papel tem o dono do local onde é implantada?” Tudo desafios que exigem reflexão. “E testar. É sempre preciso testar.”