Economia

As três prendas da crise

'Happy Birthday to you' - cantar-se-ia na Wall Street dia 9 se não fosse domingo. A petiza - a crise financeira - fará dois anos depois de amanhã, mas, paradoxalmente, com promessas de que já tem pouco tempo de vida pela frente. Três lições dos dois últimos anos.

A 9 de Agosto de 2007 um comunicado de imprensa, no mínimo estranho, vinha a público. O banco francês BNP Paribas comunicava ter congelado três fundos por impossibilidade de valorizar investimentos titularizados num veículo financeiro completamente desconhecido dos comuns mortais. De quem era a culpa? "Da completa evaporação da liquidez de certos segmentos do mercado de titularização americana", dizia-se no comunicado.

Repentinamente o mundo era apanhado de surpresa por uma palavrão financeiro que emergia do escuro das salas dos corretores: sub prime. Rapidamente se tornou tema de conversa de café. Contudo o índice Dow Jones continuou impavidamente o seu frenesim altista...até que se deu, de novo, o improvável no casino: um crash bolsista a 16 de Outubro. Soube-se, depois, com o atraso de um ano, que os Estados Unidos haviam entrado, também, em recessão (contracção da economia) em Dezembro daquele ano.

O povo comum - quer os 'capitalistas populares' quer os outros que não vivem nem de um cêntimo de rendas financeiras - foi fazendo uma aprendizagem dolorosa ao longo de 2008: de um discurso monetarista para um súbito acordar com todos os governos, a começar por Washington, a gritar que "todos somos keynesianos" iniciando em Janeiro um rol de pacotes de "estímulos" para evitar o 'risco sistémico' (outro palavrão a que nos habituámos); de uma ainda "provável" crise global acompanhada de uma inflação galopante até Julho dos preços das commodities, a começar pela mais sensível de elas todas para a nossa vida do dia-a-dia, o petróleo, para crise a sério com perigo de deflação endémica; de mero crash bolsista evoluiu-se para pânico depois da falência do Lehman Brothers a 15 de Setembro.

E quando já nos habituávamos à crise - com coisas incríveis como a falência de um estado, a Islândia, as quedas do pedestal do 'tigre' europeu mais endeusado, a Irlanda, ou da construtora mais famosa do mundo, a GM, ou o eclipsar de um grupo de notáveis que mandavam no mundo (ou julgavam que mandavam), o G7 - eis que a Goldman Sachs nos vem dizer que a euforia bolsista está de volta, que o crash terminou (o segundo maior da história do Dow Jones segundo as estatísticas), e os políticos juntam a voz a animar-nos que já batemos no fundo, a recessão já passou.

Suspiremos de alívio - antes que os aborrecidos dos pessimistas nos venham dizer que pode haver uma recaída económica, que a bolsa pode apenas estar a viver uma corrida repentina, e que o pior em termos de economia real (falências em série), impacto social (desemprego de longa duração) e monetário (colapso do dólar) ainda está para se sentir.

Mas antes que tudo passe sem termos tempo para parar para pensar, convirá, neste aniversário, alinhar três primeiras hipóteses de conclusões sobre estes dois anos.

1-      A vingança do mercado sobre a teoria da "grande moderação"

Durante vinte anos os teóricos da economia convenceram-nos que vivíamos num "mercado eficiente" (de qualquer modo, tinham-lhe colado a etiqueta de "hipótese"-no economês técnico, Efficient market hipothesis) e os práticos - os banqueiros centrais e os governantes - brincaram com a "fantasia" (no dizer do economista L. Randall Wray)  de que a política monetária conseguiria uma "grande moderação" dos ciclos, permitindo um crescimento consistente permanente, com a minimização das recessões na economia real e dos estragos em bolsa.

No dia-a-dia, os maestros (como Alan Greenspan, o antigo presidente da Reserva Federal americana) e os homens do leme (os governantes) engendraram várias "bolhas" financeiras sucessivas desde os anos 1980, de que as mais célebres andaram em torno dos hedge funds, depois com as tecnologias digitais (a famosa onda dot-com) e finalmente com o imobiliário.

O 'pai' do monetarismo, Milton Friedman, um ano antes de falecer e dois anos antes de rebentar o subprime, ainda elogiava "a experiência natural" com êxito que havia sido a gestão monetária desde os anos 1990 nos EUA (e que serviu de modelo para o resto dos banqueiros centrais). O artigo no Journal of Economic Perspectives (volume 19, nº4) ainda fez furor em 2005. Na realidade, a teoria e prática da "grande moderação" tinha gerado um "consenso monetário" que dominou à direita e à esquerda governantes na OCDE.

Friedman seria poupado à vingança do mercado, que como uma mão invisível colocou um ponto final na fantasia. E essa estranha "mistura" de monetarismo e keynesianismo bastardo que nos governou soçobrou.

2-      O capital financeiro não está imunizado

Os historiadores económicos vão recordar os últimos trinta anos como a era da 'financeirização' (mais um palavrão derivado do inglês financialization) ao extremo da economia mundial e em particular das economias da OCDE.

Um indicador que é usado, o do peso dos activos financeiros no PIB (financial deepening, no jargão técnico), revela que, em média, os países desenvolvidos, antes do rebentar da crise em 2007, andavam na casa dos 500%, com exageros como o da Irlanda nos 900% ou do Reino Unido ou França nos 700% - na verdade muito mais do que os EUA (o "pai" da inovação financeira nos últimos vinte anos graças aos boys da Wall Street).

Por cima das teorias económicas, emergiu, assim, uma expansão jamais vista de um sistema baseado na maximização de rendas financeiras e um capitalismo financeiro pujante como já não se via desde os finais do século XIX e inícios do século XX quando o economista Rudolf Hilferding baptizou a nova realidade capitalista de "capital financeiro" (e deu título a um livro que desde 1910 se tornou famoso).

A memória dos pânicos e crises financeiras foi-se apagando (1873 foi no tempo dos nossos bisavós ou trisavós e 1929 no tempo dos nossos avós ou bisavós) e gerou-se a ideia de que o capital financeiro estava imune a crises globais. Os sinais dos anos 1980 e 1990 foram menorizados - eram coisas localizadas (ou num só país, como o Japão, ou nos desgraçados países do terceiro mundo, ou focalizados num segmento muito específico da finança como os hedge funds ou as tecnológicas).

Apenas um economista, iconoclasta, remava contra a maré. Com um nome estranho, Hyman Minsky, dizia que o capitalismo financeiro sofria do mesmo mal do capitalismo industrial (que Karl Marx havia analisado), tinha a instabilidade e a fragilidade inscrita no seu ADN. Não estava imune a crises globais e sistémicas. Assim se está a ver.

Mas Minsky (que faleceu em 1996) disse ainda outra coisa perturbadora: o capitalismo financeiro vive de se alimentar de 'bolhas' como os vampiros de sangue. Sempre que a oportunidade surge (nomeadamente com legislação favorável) rapidamente se adapta como uma espécie darwiniana, e renasce das cinzas. Não admira, por isso, que, mesmo, agora, no meio do maior desencanto público em relação ao capital financeiro, ele explore o nicho de um 'keynesianismo bastardo' estatal (quer no Ocidente como na China) e amanhã possa reviver com a 'bolha' seguinte alavancada em algum sector tecnológico (já se começaram a aceitar apostas)... até que a crise financeira regresse.

3-      A geopolítica está sempre a surpreender-nos

Há dois anos atrás poucos analistas arriscariam anunciar num horizonte de curto prazo a morte do G7 (o 'clube' dos sete países considerados os mais ricos do mundo, criado em 1976) ou a hipótese de contestação do papel internacional do dólar norte-americano. Esta crise trouxe como prendas geopolíticas a ascensão do G20 (o grupo de 20 países que reúne 80% da economia mundial), e em particular a afirmação política do 'clube' dos quatro BRIC (Brasil, Rússia, Índia e China), bem como o início da discussão aberta sobre os riscos sistémicos ligados ao domínio actual do dólar.

A liquidação do papel do G7 (que associou a Rússia desde 1997 nas cimeiras de chefes de Estado, tendo passado a ser designado por G8) ficou particularmente visível depois da cimeira em L'Aquila, Itália, de 8 a 10 de Julho passado. Pouco depois, a 16 de Julho, em Yekaterimburgo, na Rússia, os BRIC realizariam a sua primeira cimeira oficial a pretexto da crise. A próxima cimeira está prevista para o Brasil em 2010. Em apenas oito anos, os BRIC passaram de uma criação literária da Goldman Sachs projectada como nova geografia do poder económico para depois dos anos 2020 para uma realidade política que aproveitou a oportunidade desta crise inesperada.

O mundo deixou de poder ser analisado pela lente do "unipolarismo" (a tal hegemonia a solo dos Estados Unidos reforçada desde a implosão da União Soviética) ou pela divisão entre "globalizadores" e "anti-globalizadores". O Planeta é algo bem mais complexo.

O académico Joseph Nye ainda, recentemente, aconselhava a "ler-se" a geo-economia e a geopolítica como se fossem um jogo de xadrez tridimensional. Ao nível de topo, o poder militar (o tal hard power decisivo para a projecção de poder) entre grandes potências continua a ser unipolar (os EUA continuam, ainda, a liderar a larga distância); no patamar do meio, das relações entre grandes economias, o mundo é hoje claramente multipolar e tem-no sido desde há uma década; ao nível mais baixo, das relações transnacionais, a globalização trouxe um resultado inesperado, um poder caoticamente distribuído e difuso onde se movem múltiplos actores não-estatais.