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O Alentejo não serve para produzir trigo, stocks de um mês "é nada", e os preços não vão voltar ao que eram

Na ausência daqueles que até aqui eram grandes fornecedores de cereais, é preciso encontrar alternativas para garantirmos a segurança alimentar em Portugal. Mas aquelas que parecem mais óbvias podem ser as mais onerosas, entre outros mitos a quebrar

A invasão da Ucrânia pela Rússia no final de fevereiro fez com que o business as usual destes dois enormes exportadores de cereais tivesse um final abrupto. Ambos são responsáveis pela exportação de 30% do trigo e da cevada mundiais e o bloqueio de 22 milhões de toneladas de cereais nos portos ucranianos controlados por Moscovo já está a lançar milhões para a fome. Entretanto, Moscovo já terá começado a venda de cereais roubados a países que deles necessitam e a distribuir cereais pilhados a regimes amigos, como o da Síria. E isto num mundo saído de uma pandemia que debilitou as cadeias de abastecimento de tal forma que deu origem, em 2021, a um ciclo de subida de preços a um ritmo nunca visto pela gerações mais novas.

O painel "Riscos e desafios das cadeias de abastecimento" do 8.º Congresso da Indústria Portuguesa Agroalimentar, promovido pela Federação das Indústrias Portuguesas Agro-Alimentares (FIPA), a decorrer esta terça-feira, 7 de junho, focou-se, entre outros temas, na segurança alimentar - isto é, garantir que não irão faltar produtos essenciais nos lares dos portugueses.

E, na ausência daqueles que até aqui eram grandes fornecedores, é preciso encontrar alternativas. Quem olha para as planícies e para os antigos silos da EPAC espalhados pelo Alentejo talvez pense que esta seja uma boa altura para tornar a produzir cereais na região que, de uma forma ou de outra, ficou associada a essa cultura, essencialmente devido às campanhas de produção (falhadas) conduzidas pelo Estado Novo.

António Serrano, professor da Universidade de Évora e antigo ministro da Agricultura entre 2009 e 2011 no segundo governo de José Sócrates, descreveu o ambiente atual como "muito difícil, de grande complexidade", mas acrescentou que "é aqui que surge a nossa oportunidade" de implementar uma estratégia de aumento da produção agrícola.

Mas Portugal tem fragilidades - como "na produção de trigo para produção de pão e massas". Isto leva-nos, tanto o País como a Europa, a ter "uma dependência externa muito grande" que nos põe longe da autosuficiência. E o que obriga Portugal a "procurar fontes alternativas de abastecimento" de outras geografias, como do sul da África ou da América do Sul.

Isto simplesmente porque Portugal não tem "condições naturais para ter uma produção competitiva e de qualidade. Temos competências naturais para fazer muita coisa na fruta e nos vinhos, mas nos cereais temos muitas limitações".

Sobre se o Alentejo poderia voltar a produzir cereais, António Serrano diz que essa possibilidade "é um absurdo porque o Alentejo nunca teve condições naturais para ter cereais. Nunca tivemos condições para ter produtividades generosas como em França, onde a água cai do céu. Temos de regar", o que implica custos adicionais numa região onde o acesso a água não é tão facilitado.

"Temos de fazer alguma coisa na zona do Alentejo onde temos água, mas cuidado, porque será uma cultura altamente subsidiada, porque não é competitiva", podendo ser utilizada como "seguro" no caso de falharem fornecedores, disse.

O antigo ministro da Agricultura classificou os 'stocks' de cereais de um mês anunciados pela atual ministra, Maria do Céu Antunes como "nada", a níveis "iguais aos de antes da guerra", sem qualquer alteração na capacidade de armazenamento nem "nenhum plano para esse efeito", criticou.

Preços do azeite não descem muito mais

Nuno Santos, diretor comercial da Sovena, a subsidiária de azeite e óleos alimentares do Grupo José de Mello, disse que "não há falta de matéria-prima". Porém, numa semana - isto é, depois da invasão da Ucrânia pela Rússia - os preços desta aumentaram 80%. Não há falta, mas está mais escassa.

Se quase 80% da exportação de óleo de girassol é proveniente da Ucrânia e da Rússia, "estando esse mercado fechado, o preço subiu. Em uma semana, teve de se procurar alternativas" porque "os preços do girassol dispararam 80%". A alternativa mais imediata, a soja, viu os preços dispararem 50%. O que contagiou a palma, "que também disparou", descreveu.

No ano passado, com a seca, "já tínhamos tido aumentos de 20%" nos preços, acrescentou, pelo que a inflação nos cereais não é um fenómeno dos últimos meses.

"Este comportamento dos preços é muito anterior à guerra da Ucrânia. Começou no final de 2020 com os problemas logísticos", concordou José Romão Braz, presidente da Associação Portuguesa Dos Industriais De Alimentos Compostos para Animais (IACA). E continuou com a entrada agressiva no mercado de um actor com um poder de compra massivo: a China.

"Em 2021, a China comprou 'stocks' de um ano de trigo e de milho em todo o mundo". "Parecia que estava a prever", ironizou. Resultado: o trigo está a custar duas vezes e meio do que custava antes do final de 2020, e o milho duas vezes mais, especificou.

Depois de "algum açambarcamento" em março perante a ameaça de escassez de azeite e óleo, "estamos numa situação mais estabilizada com menos consumo devido à quebra dos rendimentos" nascida da inflação, que "reduz consumos de forma transversal", segundo Nuno Santos. Nos países muito pobres, calibrar através da redução de consumo não é uma hipótese: "vamos ter situações de fome".

Sobre o custo do azeite e do óleo, o diretor comercial da Sovena é da opinião de que "os preços pararam de subir... acho que agora estamos numa fase onde, de preços excessivamente altos já estamos a baixar alguma coisa. Mas não vamos voltar onde estavámos antes", vaticinou.

Um mundo de oportunidades

José Romão Braz acusou o peso da regulação na Europa de estar a impedir uma maior produção de alimentos capazes de suprir as necessidades do continente e as de outros países.

O presidente da IACA concordou com os outros participantes em relação à possibilidade de aumento da produção ser "uma oportunidade de negócio", mas disse que a regulação é um entrave "porque toda a produção na Europa está enformada pela Política Agrícola Comum", que fixa volumes de produção e que limita áreas de cultivo.

A Suíça, país não-membro da União Europeia, "é autosuficiente em trigo porque paga para isso", isto é, subsidia uma produção que não é naturalmente rentável. Em Portugal, com condições de solos e clima melhores, "temos 18% de cobertura mas acho bem que passemos para 35%", considerou.

Sobre o seu setor, disse que os preços no caso das carnes e derivados ainda não estão totalmente refletidos "porque estamos a falar de um processo mais longo em ciclos [de produção] que podem ir de 3 meses a 2 anos". "Ainda não atingimos o pico dos preços nos produtos de origem animal", resumiu.

Pedro Miguel Silva, sócio associado da consultora Deloitte, concordou que "há um incentivo para que países que deixaram de produzir voltem ao mercado" estimulados pela subida dos preços dos cereais, e salientou que "estamos enquadrados num bloco económico que nos permite sentirmo-nos confiantes de que ninguém vai morrer à fome na Europa".

António Serrano foi mais colorido na sua apreciação dos próximos tempos para a indústria agroalimentar, defendendo que esta está perante "um mundo de oportunidades" pela simples razão de que "é preciso produzir alimentos para todos".

Aparecerão "novas linhas de alimentação diferentes", "produtos alternativos a preços mais baixos", novas formas de produção de alimentos que vão "baixar custos". E, na Europa, há "quatro milhões de hectares de reservas ecológicas que vão ser libertados para aumentar área plantada". Em suma, "o negócio vai aumentar" para alimentar os 9 mil milhões de seres humanos que vivem no planeta Terra de forma eficiente e abundante.