Economia

BCE decide terminar compras de dívida no terceiro trimestre e antecipa calendário de aperto da política monetária, apesar da invasão da Ucrânia

A invasão da Ucrânia pela Rússia agravou decisivamente o surto inflacionário que já surpreendera os governadores do euro na reunião de fevereiro. Novas decisões são “condicionais”, dependem da evolução da inflação

Lagarde (BCE) e Powell (Fed)
Claudio Santisteban/ Getty Images

O Banco Central Europeu (BCE) anunciou esta quinta-feira que terminará com todo o tipo de aquisição de novos ativos, nomeadamente de dívida pública, durante o terceiro trimestre deste ano e que “algum tempo depois” iniciará o ciclo de subida das taxas diretoras. Decidiu, ainda, reduzir o programa mensal de compras até setembro, com o volume a descer de 40 mil milhões de euros em abril para metade em junho.

O novo calendário de compras de ativos mais restrito, limitado até final do segundo trimestre, significa que o BCE "eliminou" do plano de aquisições, de uma penada, 30 mil milhões de aquisições entre abril e junho e mais 150 mil milhões nos terceiro e quarto trimestres.

Menos €180 mil milhões de compras

Um rombo em relação ao que tinha planeado em dezembro passado: 120 mil milhões no segundo trimestre, 90 mil milhões no terceiro e 60 mil milhões entre outubro e dezembro. São menos 180 mil milhões de euros em ativos europeus (nomeadamente dívida pública) que o BCE não vai adquirir.

No entanto, estas novas decisões são “condicionais”, dependem da evolução da inflação. O BCE mantém a opção de poder continuar as compras no terceiro trimestre ou mesmo prolongá-las, se a conjuntura o exigir.

É reconfirmada a decisão, já tomada em dezembro passado, de descontinuar no final de março o programa especial de aquisições, conhecido pela sigla PEPP e lançado para responder à pandemia em 2020.

As principais novidades desta reunião são estender, ainda este ano, a descontinuação dos estímulos ao programa de compras mais antigo, lançado por Mario Draghi, e conhecido pela sigla APP, que terminará durante o terceiro trimestre, e preparar as condições para “algum tempo depois” começar a subir as taxas diretoras (que estão em 0% na taxa de refinanciamento e em -0,5% na taxa de remuneração dos depósitos dos bancos). No mercado há a expectativa de uma primeira mexida nas taxas já na reunião de outubro. O BCE garante que a subida será sempre “gradual”. Mas a expressão “algum tempo depois” permite margem de manobra em função dos dados.

Os juros (yields) da dívida pública no mercado secundário subiram de imediato; no caso das obrigações do Tesouro português a 10 anos já ultrapassaram 1%.

Plano de reinvestimentos não termina em 2022

No entanto, o fim das compras de ativos aplica-se apenas à aquisição de novos ativos, pois o BCE manterá o programa de reinvestimentos dos títulos que forem vencendo, até final de 2024 no caso do PEPP, e ainda sem data limite definida para o APP. No conjunto, o BCE tem em carteira (somando os dois programas, o APP e o PEPP) um total de 4,9 biliões de euros em títulos cujo valor poderá ser reinvestido quando chegarem à maturidade. No caso do PEPP, que tem em carteira 1,68 biliões de euros, o plano de reinvestimento vai até final de 2024.

Em termos de dívida pública dos países membros do euro, o BCE tinha em carteira no final de 2020 um montante de 3,1 biliões de euros, o que representava, então, 28% do stock de dívida pública num total de 11,1 biliões de euros. Os dados finais da dívida pública na zona euro para 2021 ainda não estão disponíveis no Eurostat, mas a carteira no BCE subiu para 4,1 biliões de euros em dezembro passado. Atualmente, a carteira soma 4,2 biliões.

Apesar da invasão da Ucrânia, que o BCE considera ser um momento de “separação de águas” na Europa, os governadores decidiram acelerar o ritmo de aperto da política monetária. No comunicado oficial não há qualquer menção ao risco de estagflação (estagnação económica com alta inflação) nem às consequências globais da mudança geopolítica na Europa.

Face à emergência da situação de guerra nas fronteiras da Europa, o BCE decidiu assegurar todas as condições de liquidez, nomeadamente aos bancos centrais fora da zona euro até janeiro de 2023, e aplicar as sanções à Rússia. Quanto a estas sanções, elas abrangem o congelamento das reservas russas que estejam em bancos da zona euro. Segundo a agência turca Anadolu, 25% das reservas russas estão nos bancos centrais da Alemanha, Áustria e França.

Na conferência de imprensa que Christine Lagarde dará esta tarde, o BCE irá divulgar o novo quadro de previsões macroeconómicas.

A guerra que não estava nos cenários

A reunião do BCE desta quinta-feira confrontou-se com uma “surpresa” no final de fevereiro que não estava considerada nos cenários das previsões económicas apresentadas na reunião de dezembro de 2021 nem na cabeça dos governadores do euro na reunião de 3 de fevereiro quando discutiram as perspetivas do surto inflacionário.

A invasão da Ucrânia pela Rússia agravou decisivamente o surto inflacionário que já surpreendera os governadores do euro na reunião de 3 de fevereiro, quando confrontados com uma subida da inflação na zona euro para 5,1% em janeiro. Já depois da reunião, e do início da guerra de Putin, a inflação na zona euro em fevereiro deu mais um passo adiante, registou 5,8%.

Os críticos das previsões apresentadas pela equipa de economistas chefiada por Philip Lane, o economista-chefe do BCE, levantaram a voz contra vários “defeitos” do modelo de previsão dos preços, insistindo que a avaliação de que o surto era “temporário” tinha de ser largada. Mas estariam longe de imaginar que um novo movimento de expansão geopolítica por parte de Moscovo viesse virar do avesso todas as previsões macroecónomicas.

A economia mundial enfrenta, agora, um triplo choque com impacto nos preços na produção e no consumidor. Regressou o choque petrolífero – que já não sentíamos desde 2011 a 2014, quando o preço do barril de Brent esteve acima de 100 dólares persistentemente – com a cotação do Brent a subir 22% desde o dia da invasão, já tendo chegado aos 132 dólares, um recorde desde 2008 (ano em que chegou a um pico de 146 dólares). No gás natural negociado na Europa, o disparo foi brutal: 95% desde 24 de fevereiro. Ao choque do ouro negro junta-se um disparo em algumas matérias-primas agrícolas, com o preço do trigo a subir 44% desde a invasão da Ucrânia. A Rússia é o maior exportador mundial e a Ucrânia o quinto. Finalmente, o terceiro choque sente-se em alguns metais, com o caso mais extremo no níquel (em que a Rússia é o principal exportador mundial), com os preços a subirem para a estratosfera: um disparo de 119% desde a invasão. O que levou o mercado londrino do níquel a encerrar desde 8 de fevereiro.

O resultado da aceleração deste surto leva o BCE a ter de rever em alta as previsões de inflação para este ano (3,2% na previsão de dezembro) e para os dois anos seguintes (abaixo de 2%, no quadro avançado em dezembro) e a cortar nas previsões de crescimento (4,2% em 2022; 2,9% em 2023, 1,6% em 2024).

O dilema do BCE

“O BCE tem de navegar entre dois riscos de sentido contrário”, resume esta quinta-feira o economista francês Eric Dor, professor e diretor de Estudos Económivos no IESEG em Paris e Lille, em França, face à alteração do contexto geopolítico na Europa e à mudança radical nos mercados de matérias-primas.

Por um lado, o surto inflacionário será ainda mais brutal pressionando para um aperto nos vários instrumentos de política monetária (compras de ativos, empréstimos aos bancos, taxas diretoras de juros); mas, por outro lado, os efeitos colaterais da guerra militar, económica e financeira conjugados com juros mais altos do BCE e a descontinuação mais acelerada das aquisições de ativos (agravando a situação de endividamento dos Estados, das empresas e das famílias) empurra as economias do euro para um crescimento medíocre, ou mesmo uma estagnação ou recessão. A guerra pode ter um efeito similar ao primeiro ano de pandemia.

O quadro atual de utilização dos instrumentos monetários revela que o BCE já usou 91% do programa especial designado pela sigla inglesa PEPP (que foi criado para responder à pandemia e deverá terminar no final de março), tem em carteira 2,5 biliões de euros em títulos de dívida pública comprados no âmbito do programa mais antigo criado por Mario Draghi (e conhecido pela sigla inglesa PSPP) e emprestou 2,2 biliões de euros aos bancos. As compras de ativos e os empréstimos aos bancos representam 81% do valor dos ativos do BCE, que está num recorde histórico de 8,67 biliões de euros.

Mercado da dívida ainda tinha esperança na cautela imediata do BCE

Apesar da pressão inflacionista para um aperto da política monetária do BCE mais célere em 2022, o mercado da dívida reagiu com uma descida das taxas (yields) desde a invasão russa.

Os juros das obrigações do Tesouro português (OT) a 10 anos caíram de 1,16% antes da invasão para menos de 1% na abertura desta quinta-feira, no mercado secundário (o mercado onde se transacionam os títulos entre os investidores). No caso das obrigações alemãs (Bunds), que servem de referência, naquele período, a descida foi de 0,22% para 0,18%. No conjunto da zona euro, o juro médio a 10 anos desceu de 0,88% antes da invasão para 0,73% no dia 8 de março, o último dado disponibilizado pelo BCE.

No mercado de emissão de dívida, Portugal foi, esta quarta-feira, ao mercado primário colocar 1000 milhões de euros tendo pago 0,217% no prazo a vencer em 2027 e 1,154% no prazo a vencer em 2034. Antes da invasão, no mercado secundário, a taxa para a obrigação de 2027 estava muito acima, em 0,62%. No caso da obrigação de mais longo prazo, as taxas, antes da invasão, estavam em 1,16% para os 10 anos e 1,42% para os 15 anos, acima do que foi pago na emissão da obrigação de 2034.

No entanto, as projeções do algoritmo do portal World Government Bonds continuam a apontar para uma subida até final do ano: em dezembro, os juros das OT estarão próximo de 2% e os das Bunds muito perto de 1%. O spread entre as duas dívidas será, então, de cerca de 1 ponto percentual, quando atualmente é inferior a 80 pontos-base (0,8 pontos percentuais).