“Sou o principal e primeiro responsável de tudo o que o banco fez nas matérias em apreciação durante esse período. Sou a pessoa mais capacitada”. Fernando Ulrich, presidente do conselho de administração do Banco BPI desde abril de 2017 mas sem funções executivas, começou por dizê-lo na sua sessão desta terça-feira, 15 de fevereiro, enquanto representante do BPI no julgamento de bancos que a Autoridade da Concorrência considera que trocaram informações sensíveis e confidenciais entre si.
Fernando Ulrich é, entre os representantes dos bancos, o único que foi presidente executivo – os outros bancos levaram ao julgamento membros da comissão executiva, mas não o número um. “Porque é que eu estou aqui? Não sou membro da comissão executiva do banco desde abril de 2017, mas fui o primeiro responsável executivo do banco durante todo o período da investigação, de 2002 a 2013. De 2004 a 2013 era presidente da comissão executiva, entre 2002 e 2004, era vice-presidente da comissão executiva, mas era quem tinha responsabilidade pela banca de retalho”, declarou.
Para o chairman do BPI, condenado pela Autoridade da Concorrência a uma coima de 30 milhões de euros por participar na troca de dados sobre créditos entre mais de uma dezena de bancos, o facto de estar em tribunal para falar sobre problemas na concorrência nos empréstimos para a compra de casa é uma surpresa. “É para mim uma grande ironia estar a falar destas matérias porque se me perguntasse, ao longo de 40 anos de atividade na banca, qual é o segmento de negócio mais competitivo e que melhor serve e mais valor cria para os clientes, respondia que é o crédito à habitação”, disse.
Relações cortadas com Marcelo
Com ligações ao BPI desde 1983 (foi nesse ano que entrou na SPI – Sociedade Portuguesa de Investimentos, de Artur Santos Silva, que viria a dar lugar ao banco), o banqueiro lembrou os anos de hostilidade na banca para tentar tirar de cima da mesa a ideia de que havia condições para trocar informação confidencial. E esses conflitos foram com todos os grandes bancos, que enumerou, à exceção da Caixa Geral de Depósitos.
“O BPI teve uma fusão acordada com o BES e que, na véspera da assembleia-geral, foi anulada unilateralmente. Acha que não deixa feridas, que ficamos todos os melhores amigos, para conspirar, para fazer mal aos clientes?”, questionou, retoricamente, Fernando Ulrich.
“Acha que não deixa feridas, que ficamos todos os melhores amigos, para conspirar, para fazer mal aos clientes?”
Fernando Ulrich, presidente do conselho de administração do BPI
Até Marcelo Rebelo de Sousa foi referido. “Foram públicas as minhas divergências com Ricardo Salgado no conselho da PT. Por causa disso até me zanguei com um grande amigo que hoje é Presidente da República porque, quando era comentador, me criticou por atitudes que tomei no conselho da PT. Escrevi uma carta muito dura, estivemos anos de relações cortadas, não nos falávamos”, relatou em tribunal.
Só restava CGD e não ia conspirar com banco do Estado
Ulrich lembrou também o processo em tribunal colocado a Jorge Jardim Gonçalves, ex-presidente do BCP, que “presidiu ao lançamento de uma OPA [oferta pública de aquisição] hostil sobre o BPI em que o pagamento era em dinheiro”, e não contava com os acionistas do banco. “Era mesmo para destruir no BPI”. “E depois no dia seguinte de manhã íamos combinar [preços]?”.
O Santander também teve “um comportamento particularmente agressivo e desagradável”. “Enquanto [Artur] Santos Silva e eu cá andarmos, a gente não se esquece disso”, continuou.
“A única entidade bancária relevante com quem sempre tivemos e temos muito boas relações é a CGD. Acha que íamos conspirar com o banco do Estado?”, concluiu Ulrich sobre o sector.
AdC quis condicionar opinião pública
Fernando Ulrich foi muito crítico da postura da AdC ao longo da sua sessão, considerando mesmo que houve um “condicionamento que quis criar na opinião pública” quando, em 2019, decidiu condenar 14 bancos por um “conluio” para estabilizar quotas de mercado. “E não me atrevo a dizer no tribunal, mas apetece”, atirou. “Cria uma perceção errada na opinião pública, porque percebo que sem criar a perceção errada era difícil de justificar um conjunto de coimas que somam 224 milhões de euros [ao todo, aproximava-se dos 225 milhões aquando da decisão]”, declarou.
A condenação da AdC, desafiada pelas instituições de crédito, baseou-se nas trocas de informação, mas não nos efeitos que esse intercâmbio teve no preço pago pelos consumidores. “Num comunicado [de imprensa] de duas páginas [divulgado em 2019, com a decisão final], diz quatro vezes que os consumidores foram prejudicados ou não beneficiaram do que podiam ter beneficiado. É inconcebível”, atacou, já que esse efeito nos preços não faz parte da condenação. “Não existe em lado nenhum”, disse, a prova de que os consumidores foram prejudicados.
Aliás, o banqueiro que começou a carreira como jornalista (no Expresso) criticou também a lei que coloca a AdC num conflito de interesses, já que define as coimas das quais beneficia 40% do seu resultado.
Informação sem relevância
Perante a juíza Mariana Machado e os advogados dos 11 bancos que contestaram a decisão da AdC, Fernando Ulrich tentou mostrar que os dados trocados não eram relevantes. “Se queremos concorrer, e sou a favor da concorrência e do mercado livre, obviamente que é muito importante poder concorrer pelo preço, qualidade e inovação, para nos distinguirmos dos concorrentes. Como é que me posso distinguir de algo que não conheço?”, questionou-se na sua sua sessão, para mostrar que é necessário haver conversas.
“As partilhas de informação com funcionários de outros bancos não tinham absolutamente importância nenhuma.”
Fernando Ulrich, presidente do conselho de administração do BPI
O líder do banco detido pelos espanhóis do CaixaBank (do qual também é administrador) considera que toda a informação deve ser pública e defende que os dados trocados entre os funcionários dos bancos eram “basicamente” sobre o passado e o presente. “Informação futura é muito escassa. As partilhas de informação com funcionários de outros bancos não tinham absolutamente importância nenhuma”, disse, porque se tratava de dados sobre decisões já tomadas (mesmo que incidissem sobre spreads dos créditos a mudar no futuro).
“Não houve combinação nem implícita, nem explícita”, continuou, para deixar uma nova questão: “Já repararam na conflitualidade entre os bancos?”. A juíza lembrou, porém, que nem só os spreads mínimos e máximos eram mostrados à concorrência – também havia uma grelha com combinações que podiam levar ao cálculo do spread médio. Ulrich respondeu que não se dava atenção ao spread médio, nem ao máximo, mas ao spread mínimo. “O spread máximo não tinha grande interesse, porque podia haver bancos que usassem spread muito alto só para dizer que não recusavam as operações”.
Empresa “nenhuma” decide sem analisar concorrência
Ulrich usou o seu passado, como administrador de empresas (da Semapa à PT Multimedia, passando pela SIC e Impresa – proprietária do Expresso), para tentar demonstrar que é normal haver troca de informação com concorrentes. “Não houve uma em que não tivesse visto que era muito importante, como instrumento de gestão, a comparação com os concorrentes. Não houve uma”, declarou.
“Nunca vi empresa nenhuma que tome decisões sem procurar analisar o que faz a concorrência”, continuou. “As empresas fazem tudo o que podem para saber o que os concorrentes estão a fazer”, declarou Ulrich, dando o exemplo da Fórmula 1, porque só a 60 km/h – e não a 300 km/h – é que teriam a certeza que sobreviveriam numa corrida se não soubessem o que fazem os concorrentes.
Podia ter sido diferente?
O banqueiro – que se apresentou como bancário em tribunal – considerou que a AdC devia ter falado com os bancos para alertar para a situação (que tinha sido denunciada em 2012 pelo Barclays, que também nela participava). Assim, seria possível, defendeu, ter acelerado o processo logo em 2013, com admoestações ou coimas de valor muito mais reduzido, e não estar em 2022 em tribunal – e o tempo não acabou ainda; as alegações finais do caso estão marcadas para o fim deste mês, mas há depois espaço para recursos.
Para evitar situações com o processo que ficou conhecido como o cartel da banca (ainda que não seja mesmo um cartel na decisão da AdC), a lei da concorrência devia ser alterada para proibir qualquer contacto entre concorrentes, a não ser o previamente autorizado pelo supervisor sectorial. “Regras mais taxativas e mais claras e com menos espaço para interpretações são melhores”, justificou.