Economia

A palavra aos banqueiros: andaram ou não a combinar ‘spreads’ nos créditos à habitação?

Os altos responsáveis de alguns dos maiores bancos no país vão esta semana a tribunal, para o processo do chamado “cartel da banca”. Há coimas de 225 milhões em jogo. Bancos alegam que os dados sobre créditos trocados por funcionários não eram confidenciais

Fernando Ulrich, presidente do BPI. Autor: BPI

O Governo estava reunido, na Rua Prof. Gomes Teixeira, em Lisboa, para decidir o que fazer à TAP. O sul-americano Germán Efromovich tinha uma proposta para comprar a companhia aérea, mas os bancos não davam as garantias necessárias para a transação. A decisão tomada naquele Conselho de Ministros de 20 de dezembro de 2012 foi cancelar a venda, e esperar por melhores dias para a privatização.

Exatamente no mesmo dia, mas nos escritórios da Autoridade da Concorrência, na Avenida de Berna, também em Lisboa, os bancos também eram protagonistas. Ali decidia-se a abertura de um inquérito: os bancos andavam a trocar, entre si, informações confidenciais sobre o crédito que concediam e podiam ter feito os clientes pagar mais do que deviam num mercado concorrencial. Um mês antes, o Barclays tinha feito uma denúncia sobre o esquema.

Tudo isto no final de 2012. Entretanto passou-se quase uma década. A TAP já foi privatizada, readquirida parcialmente pelo Estado, e depois nacionalizada totalmente.

Longe de um desfecho está o inquérito aos bancos, que passou por buscas, recursos, e saiu da Concorrência com coimas de 225 milhões de euros com 14 visados. Razão? A participação dos bancos “num intercâmbio de informações comerciais sensíveis, com o objeto de restringir e falsear de forma sensível a concorrência”. As impugnações levaram o caso para o Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão. E é lá, em Santarém, que esta semana têm lugar as sessões de julgamento mais relevantes: aquelas onde estarão presentes os responsáveis de cada banco.

Como o Público contou, só o BPI leva o seu líder máximo, o atual presidente da administração, Fernando Ulrich, que, à data dos factos, era o presidente executivo do banco. É esta segunda-feira que falará no tribunal, bem como Manuel Preto, há anos o administrador financeiro do Santander em Portugal. Na quarta-feira, é a vez de José Pessanha (administrador do BCP), e na sexta-feira são os representantes da Caixa Geral de Depósitos (o administrador José João Guilherme) e do Montepio (o administrador José Carlos Mateus) a prestar esclarecimentos.

Os argumentos dos bancos

São eles que vão tentar explicar ao tribunal as suas contestações à Concorrência, que considera que há e-mails trocados entre funcionários dos bancos com informações sigilosas. Havia dados a circular sobre as ofertas comerciais e a produção de crédito, a acontecer no crédito à habitação, ao consumo e até a empresas.

“A troca de informação sensível tinha lugar regularmente, nomeadamente por email, fazendo parte do quotidiano dos colaboradores dos departamentos de marketing ou dos departamentos comerciais das visadas, apresentando-se de forma institucionalizada e sendo, de resto, geralmente do conhecimento das respetivas hierarquias”.

Autoridade da Concorrência, decisão final, versão não confidencial

Entre as justificações que vêm sendo avançadas pelos bancos, há várias repetidas: o mercado de crédito é competitivo, com preços esmagados, pelo que não há qualquer sintoma de troca de informação sensível. Havia dados trocados entre funcionários de cada banco – e há e-mails a prová-lo –, mas àquilo que a Autoridade da Concorrência diz que é confidencial e segredo de negócio, os bancos respondem que eram dados não privados.

No caso do BPI, por exemplo, a primeira resposta à acusação da Autoridade da Concorrência apontava para vários argumentos: havia compilações de informações que nada provam; a proposta que surge num e-mail não foi seguida por nenhum banco, pelo que nada está provado; as trocas de dados sobre spreads não davam sequer tempo para que os concorrentes adequassem a sua política de preçário.

Não é muito diferente do que é dito pelos restantes bancos: muita informação “apanhada” pelas buscas era de mudanças já feitas; os preçários são públicos; os spreads são negociáveis com os clientes; os e-mails nem eram trocados ao mais alto nível; houve uma crise financeira naquela altura que levou à subida de spreads; os dados não tinham qualquer carácter estratégico.

Muitos recursos para trás

Na Concorrência, o processo demorou por muito tempo (passou por três presidentes, tendo sido decidido pela atual líder, Margarida Matos Rosa), e houve até prescrições (o Abanca escapou a condenação porque as alegadas infrações são já demasiado antigas). Infrações que são um receio para o futuro, tendo em conta que, diz a Concorrência, estenderam-se de 2002 a 2013, e o primeiro mês de 2022 já quase passou.

Houve recursos e impugnações das entidades bancárias – contestavam as buscas, argumentavam pela confidencialidade dos dados, apontavam para inconstitucionalidades – e houve até a suspensão do inquérito por cerca de um ano. A decisão final só veio a 9 de setembro de 2019. Ficou conhecido como o cartel da banca, mas não havia essa classificação na decisão final; havia, sim, o intercâmbio de informação sensível.

A resposta a estes temas vai continuar, então, esta semana a ser dada pelas testemunhas apresentadas pelos bancos, para tentarem evitar as coimas conjuntas que ascendem a 225 milhões de euros (variam consoante a dimensão da entidade, das provas obtidas e da situação concreta). Aliás, o Banco de Portugal chegou a alertar a Concorrência para o risco de montantes muito elevados das coimas colocarem em causa a estabilidade financeira.

Denúncia do Barclays, ajuda do Montepio

Do leque de bancos apanhados, o Santander sofreu duas coimas, uma delas por ser relativa ao Popular, banco que comprou. O BES – em liquidação ficou com a sanção, ainda que o negócio comercial tenha transitado para o Novo Banco na resolução, em 2014.

O Barclays também se livrou da sanção por ter dele partido a denúncia (no âmbito do chamado regime de clemência) – aquando da acusação, vendera já a área de retalho comercial ao Bankinter. O Banco Montepio também apresentou um pedido de clemência em 2014, trazendo mais informações para o processo, beneficiando de dispensa de metade da coima (de 26 para 13 milhões de euros).

Aos bancos, se vierem a ser condenados com trânsito em julgado (é possível o recurso para instâncias superiores), foi aplicada ainda a sanção acessória que os obriga a publicar a sentença em jornais. Se acontecer, não será no imediato. Será que uma decisão final sobre o já longo processo do cartel da banca virá antes da também demorada reprivatização parcial da TAP, que o Governo anunciou ser uma hipótese até 2025?