Economia

CMVM faz cerco à idoneidade dos auditores. E aos sócios de auditoras que não são revisores de contas

Governo aprecia propostas de alteração ao regime dos revisores oficiais de contas. Novas regras podem ter impacto nos casos recentes em torno de KPMG e Deloitte. Presidente da CMVM, Gabriela Figueiredo Dias, diz que empresas afastam auditores intrusivos e que detetam falhas

Gabriela Figueiredo Dias, presidente da CMVM
Alberto Frias

Num momento em que auditores da KPMG saíram da profissão mas, nalguns casos, mantêm cargos de relevo, e em que a está sob investigação a estrutura usada por sócios da Deloitte para distribuição de dividendos, a Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM) quer intensificar a avaliação da idoneidade que pode ser feita a estes profissionais. A proposta está nas mãos do Governo.

Desde 2016 que a CMVM é a responsável por supervisionar os revisores oficiais de contas (ROC) e as sociedades de revisores oficiais de contas (SROC) mas, no ano passado, o regulador presidido por Gabriela Figueiredo Dias quis alterar a legislação. Foi colocada em consulta pública uma proposta de revisão da legislação, já foram recebidos os contributos e o documento final está agora nas mãos do Governo.

“A atribuição de poderes à CMVM para supervisionar os requisitos de idoneidade, qualificação e experiência profissional dos membros dos órgãos sociais e idoneidade dos sócios de sociedades de revisores oficiais de contas, independentemente de os mesmos serem ou não revisores oficiais de contas, tendo em conta a influência que exercem na cultura e liderança daquelas estruturas” é um dos pontos em revisão, segundo o discurso de Gabriela Figueiredo Dias no XIII Congresso dos revisores oficiais de contas, que decorreu esta quinta-feira, 12 de setembro.

A idoneidade dos auditores é um dos aspetos em que o regulador do mercado de capitais quer apostar, sendo, aliás, uma “prioridade” para 2019 – aliás, ainda há poucas semanas a sua líder o referiu ao Expresso. “Estamos convictos de haver ainda um caminho relevante a percorrer, nomeadamente pelo desenvolvimento e a implementação de um modelo mais robusto, consistente, transparente e eficiente de aferição da idoneidade”, admitiu hoje a responsável.

Mas, nesta proposta que o Governo ainda analisa, a CMVM diz mesmo que não só a idoneidade dos auditores como também dos sócios de empresas que não são auditores tem de ser aferida. Um aspeto que pode ter aplicações práticas recentes.

Os casos em que a questão se colocou

Há semanas, a KPMG foi abalada pela notícia de que Inês Viegas, Sílvia Gomes e Fernando Antunes, antigos auditores do Banco Espírito Santo, abandonaram a profissão, antes que fosse concluída a ação aberta pela CMVM de avaliação das suas idoneidades. Todos continuam na empresa, ainda que sem serem ROC (revisores oficiais de contas), e Sílvia Gomes continuou, igualmente, como membro da comissão executiva da KPMG. O Jornal Económico escreveu que a CMVM queria que a administradora não tivesse essa responsabilidade na empresa. Todos foram condenados pelo Banco de Portugal devido ao caso BES, a par ainda do presidente da auditora, Sikander Sattar, e Inês Filipe. Sattar não é revisor oficial de contas, portanto escapou a essa análise da CMVM e Inês Filipe, também ex-auditora do BES, está na KPMG Angola, fora do país.

Se a nova legislação estivesse em vigor, segundo descrita por Gabriela Figueiredo Dias, a CMVM poderia exercer um papel de supervisão sobre Sikander Sattar e Sílvia Gomes, por serem sócios da sociedade.

Não é caso único. 48 sócios da Deloitte, como contou o Expresso, receberam 53 milhões de euros em dividendos através de uma estrutura de empresas em Malta, num litígio com a Autoridade Fiscal que terminou com o pagamento de 9 milhões ao Fisco por parte daqueles responsáveis – tema que está em investigação no Ministério Público. E nem todos os sócios são revisores oficiais de contas, pelo que uma eventual ação da CMVM, à luz da atual legislação, nunca poderia incidir sobre quem não está registado junto do regulador.

Mais mudanças

A proposta de alteração do regime jurídico destas sociedades e do estatuto destes profissionais olha para outros aspetos, nomeadamente a redução das sociedades que estão sob o regime apertado (entidades de interesse público), e também a simplificação e flexibilização do regime de rotação dos auditores, que é obrigatória.

Na proposta inicial (a final, não é conhecida, sabendo-se apenas o que disse Gabriela Figueiredo Dias no discurso desta quinta-feira), também havia modificações ao regime sancionatório.

Empresas afastam auditores intrusivos

Mas as mudanças a acontecer não podem ocorrer apenas no papel. No seu discurso, a presidente da CMVM foi bastante crítica das empresas que são auditadas e que desvalorizam - e limitam - esse trabalho. “É fundamental combater comportamentos de desfavorecimento ou afastamento dos auditores que destacam, na sua interação com a empresa ou nos seus relatórios finais, fragilidades ou irregularidades, através, por exemplo, da inclusão de ênfases ou reservas”, comentou Gabriela Figueiredo Dias.

A líder da CMVM não tem dúvidas de que estas situações têm lugar, ainda que nada especifique sobre o que pode ser feito para impedi-lo: “Sabemos, sem surpresa, mas com grande preocupação, que esta é uma tendência real, que agrava os riscos de dependência económica e de menor objetividade, reduz a qualidade da auditoria e subverte o propósito de geração de confiança e criação de valor da função dos auditores”.