O Governo considera que pode ficar com a Coleção Berardo quando acabar o atual acordo que tem com o empresário que dá nome ao conjunto das obras de arte. Aliás, tem um documento oficial em que essa ideia já foi transmitida a Joe Berardo. Contudo, o comendador madeirense afirmou o contrário na audição na comissão parlamentar de inquérito à Caixa Geral de Depósitos.
“No primeiro contrato, Sócrates exigiu que tivesse opção [de compra] da coleção [pelo] Estado. Quando foi o segundo contrato, eu disse: aí já não vai”, afirmou Joe Berardo na passada sexta-feira, na audição que já motivou críticas até do Presidente da República.
A primeira versão do contrato, em 2006, que é assinada pelo Governo de José Sócrates (diploma que António Costa, então ministro, também assina), é clara na ideia de que há um direito de compra no final do contrato. “É atribuído ao Estado o direito de opção de aquisição da Coleção Berardo, a exercer entre 1 de Janeiro de 2007 e 31 de Dezembro de 2016, de modo que a mesma possa integrar de forma definitiva o património da Fundação”.
Foi aí que se criou o regime de comodato com o Estado: as obras foram cedidas gratuitamente pela Associação Coleção Berardo à Fundação de Arte Moderna e Contemporânea — Colecção Berardo, onde o Estado tem presença. E o Estado ficou com poder de adquirir aquela coleção. Em 2016, o acordo foi renovado até 2022, quase à última da hora. E é aí que Berardo diz que não foi incluído o direito de compra.
“Tenho informação de que, no protocolo, o Estado, o Governo, não abdicou de qualquer opção de compra. Consta do protocolo que o Estado mantém a opção de compra”, garantiu o primeiro-ministro António Costa no debate quinzenal que ocorreu no Parlamento esta segunda-feira, em resposta a uma pergunta de Catarina Martins, do Bloco de Esquerda.
Foi para esta afirmação que o Ministério da Cultura remeteu o Expresso esta segunda-feira, quando questionado sobre esta contradição no que diz respeito à opção de compra.
Documento dirigido a Berardo já refere direito
A ideia de que o direito de recompra se mantém já tinha sido transmitido pelos serviços estatais, ou mais propriamente a Direção-Geral do Património Cultural, a Joe Berardo, no verão de 2018. Quando fez a comunicação prévia para a expedição temporária de 16 obras, com a possibilidade de venda, este organismo respondeu ao comendador com a recusa e um dos argumentos foi precisamente esse.
A adenda ao protocolo relativo à coleção “confere ao Estado o direito de opção de compra da coleção Berardo, no seu todo, no termo da vigência do comodato ou da sua última renovação”. Aliás, o facto de o Estado ter este direito obrigava a que a associação tivesse de contactá-lo para pedir autorização para a alienação.
No Parlamento, Joe Berardo – que assumiu que ficaria “muito contente” com o fim deste acordo – afirmou que fez este pedido para a venda de 16 obras para “testar” o acordo com o Estado. Foi quando assegurou que não havia direito de compra.
Como entra o preço
E é aqui que pode entrar o fator preço. A revista Visão, em 2017, já o tinha escrito. “No final de 2016, o Ministério da Cultura conseguiu garantir a continuidade do Museu Berardo. Mas perdeu-se a opção de compra da coleção ao valor estipulado em 2006: 316 milhões de euros. A última palavra será sempre do comendador”: esta era a entrada do artigo da revista.
O Ministério da Cultura, então encabeçado por Luís Castro Mendes, assegurou um novo acordo para que a coleção continuasse exposta no Centro Cultural de Belém. Só que na primeira versão havia uma avaliação já feita, e um compromisso de que o preço seria respeito: havia a avaliação feita de 316 milhões de euros pela Christie’s.
“O direito de opção extingue-se se a Associação Colecção Berardo não aceitar o preço determinado por avaliação feita por entidade terceira escolhida pelo Estado”, indicava o documento de 2006.
A Visão relatava que, a partir de 2016, a adenda deixava de ter obrigatoriedade de ligação a este preço. O empresário “poderá não aceitar o preço encontrado, caso em que a opção [de compra] fica sem efeito”.
É para a coleção que os bancos olham para conseguir recuperar parte da sua dívida: a Caixa Geral de Depósitos, o Banco Comercial Português e o Novo Banco reclamam 962 milhões. É também neste campo que há a complexidade de execução admitida por Berardo no Parlamento. Os bancos têm como garantia os títulos da Associação Coleção Berardo, que é a dona das obras de arte. Ou seja, não há uma garantia direta.