Abuso de mercado ou um comportamento legítimo? O mercado ibérico de eletricidade (Mibel) sofreu na noite de terça-feira um disparo histórico do preço grossista da energia durante um período de uma hora, com o preço do megawatt hora (MWh) a fixar-se no máximo permitido por lei, 9.999 euros, isto é, cerca de 200 vezes o valor médio a que a eletricidade é normalmente transacionada na Península Ibérica.
O episódio é revelado esta quinta-feira pelo jornal espanhol "Cinco Dias", que conta que o disparo ocorreu no mercado de serviços de sistema, um segmento do Mibel que serve para fazer ajustes momentâneos entre oferta e procura quando há desequilíbrios inesperados que possam comprometer a estabilidade da rede elétrica.
Segundo o mesmo jornal, de uma hora para outra, na noite de terça-feira, houve em Espanha um "buraco" de 3000 megawatts (MW) entre a potência em produção e o consumo. Por um lado, porque a produção eólica foi inferior ao volume que estava projetado pela espanhola REE (o operador da rede elétrica, congénere da portuguesa REN) e por outro porque o consumo foi superior ao que os comercializadores de eletricidade tinham contratado para aquela hora.
O presidente do Omip, o operador português do mercado de futuros de eletricidade, Artur Trindade, admite ao Expresso que "pode haver um abuso, mas é preciso ver o que aconteceu".
Segundo o mesmo responsável, o disparo de preços nos serviços de sistema pode ser motivado, por exemplo, por um produtor com uma central hidroelétrica que não está interessado em produzir naquela hora, de forma a guardar a água da barragem para produzir mais tarde, quando os preços normais do mercado forem mais elevados. Por não ter especial interesse em turbinar naquele período, esse produtor tende a cobrar pelos serviços de sistema um preço mais alto.
Não é ainda claro o motivo pelo qual a espanhola REE não recorreu, perante aquela crise, ao mecanismo de interruptibilidade, segundo o qual o operador da rede pode, mediante um aviso prévio de algumas horas, obrigar alguns clientes industriais (os que tenham aderido a esse mecanismo) a desligar o abastecimento de eletricidade.
O mercado de serviços de sistema tem um preço máximo de 9.999 euros por MWh, mas no mercado diário (que fixa os preços, hora a hora, para o dia seguinte) os preços praticados só podem oscilar entre os zero e os 180 euros por MWh (esta quinta-feira o preço ronda os 46 euros por MWh).
O episódio de terça-feira terá um impacto limitado, ou mesmo imperceptível, para os consumidores finais de eletricidade, uma vez que o volume de energia contratada ao preço recorde foi reduzido e o seu custo acabará diluído nos volumes mensais que são transacionados no Mibel, a preços ditos "normais".
Recorde-se que o mercado de serviços de sistema já foi investigado em Portugal pela Autoridade da Concorrência (AdC) que concluiu ter havido manipulação por parte da EDP entre 2009 e 2013, obtendo ganhos exagerados neste mercado de balanço graças à indisponibilidade de algumas centrais hidroelétricas suas abrangidas pelas rendas do regime CMEC - Custos para a Manutenção do Equilíbrio Contratial.
Em setembro do ano passado a AdC emitiu uma nota de ilicitude, na qual estimava que a prática da EDP Produção terá "gerado um dano para o sistema elétrico nacional e para os consumidores de cerca de 140 milhões de euros". A investigação iniciou-se em 2016. Já em fevereiro do corrente ano a presidente da AdC, Margarida Matos Rosa, indicou no Parlamento que a EDP já respondeu à nota de ilicitude e que a decisão final da AdC será tomada até final do ano.