ARQUIVO Salazar: 40 anos

Já podemos arrumar Salazar na História? (parte II)

No dia 27 de julho passaram 40 anos desde a morte de Salazar: tanto tempo como o que ele esteve no poder (1928-1968). Hoje, é preciso ter mais de 60 anos de idade para ter sido adulto sob o seu Governo. Já o podemos arrumar na História? E como? Clique para aceder ao dossiê Salazar morreu há 40 anos

Rui Ramos (www.expresso.pt)

Compromissos

Salazar foi o primeiro chefe de Governo, desde 1834, que não era liberal ou republicano. Era um conservador de tipo reacionário. Ora, Portugal, antes de Salazar, não parecia um país para conservadores. As instituições tradicionais, da Nobreza à Igreja, tinham sido liquidadas ou reduzidas. As maiores forças políticas organizadas eram de esquerda. Salazar subiu ao poder graças à Ditadura Militar, estabelecida em 1926, mas essa ditadura só foi possível pelo colapso político das esquerdas na década de 20, divididas pelo radicalismo jacobino, desacreditadas pelo descontrolo financeiro e confundidas pelo advento do comunismo soviético.

Os velhos generais republicanos e maçons que dirigiram a Ditadura Militar entre 1926 e 1932 sobreviveram no poder porque encontraram defensores determinados em jovens oficiais direitistas e aliados compreensivos no clero, mas também porque muitos liberais e republicanos, desmoralizados pela experiência anterior a 1926 e desconfiados de radicalismos que agora podiam significar uma deriva comunista (como depois julgaram ver na República espanhola), acabaram por optar pela neutralidade ou encostar-se à ditadura.

Salazar não viveu apenas do catolicismo e da simpatia dos chamados "nacionalistas", mas da sua capacidade para gerir diversas fações e interesses, congregadas quase só pela reprovação da extrema-esquerda. Se bem que livre das piedades liberais e democratas, nunca se propôs restaurar a monarquia ou restabelecer o catolicismo como religião de Estado. Os compromissos, necessários para manter juntas personalidades e grupos vários, foram um ingrediente fundamental do seu poder. Pôde assim contar, a seu favor, com a arbitragem do Presidente da República, o general Carmona.

A última impressão que deixou, a do velho de 1968, faz esquecer a primeira impressão, que explica o seu sucesso, a do jovem de 1928: o professor universitário de 39 anos, disciplinado, trabalhador, realista, que não se parecia com ninguém na classe política. Muito magro, com uma voz ciciada, o ministro das Finanças não era uma figura imponente, mas embasbacou com o orçamento sem défice e a moeda estável. Os portugueses votaram com o dinheiro: voltaram a pô-lo no país, donde o estavam a tirar havia duas décadas.

Salazar propôs-se "baixar a febre política", ensinar os portugueses a "viver habitualmente". A Constituição de 1933 poderia ter servido para vários regimes. Ao longo da década de 30, Salazar fez o Estado Novo lembrar o regime fascista italiano, com milícias e saudações romanas. No entanto, negou o Estado Totalitário e manteve-se aliado da Inglaterra. Durante a II Guerra Mundial, aproveitou o facto de os beligerantes terem deixado a Península Ibérica fora da guerra e procurou servir ambos os lados, com lucro. Em 1945, perante a vitória aliada, enalteceu o seu auxílio à causa anglo-americana, reviu as leis, fez logo eleições e começou a falar de "democracia", embora "orgânica". Eram variações impostas pelas circunstâncias, mas permitidas por uma ditadura mais complexa do que admitiam os seus inimigos.

Muita gente com papéis fundamentais depois de 1974 veio do Estado Novo: por exemplo, o professor José Joaquim Teixeira Ribeiro, vice-primeiro-ministro do V Governo Provisório de Vasco Gonçalves em 1975. De facto, o Estado Novo proporcionou pessoal a todos os partidos da nova democracia. E isso foi possível porque reunira gente de quase todos os feitios. Salazar teve em seu redor católicos e monárquicos, mas também republicanos e maçons. As linhas de confronto nunca foram tão simples como em Espanha, onde a ditadura de Franco emergiu de três anos de guerra civil. Sobre o ministro Duarte Pacheco, o próprio Salazar comentava, na década de 60: "Bastante das esquerdas, mas, como tinha grande ambição de poder, adaptou-se com facilidade."

Ezequiel de Campos, deputado republicano e colaborador da "Seara Nova", foi outro dos que se juntou a Salazar. Um dia, confessou ao seu amigo João Sarmento Pimentel, exilado, que sacrificara a sua "ideia de liberdade" para realizar os seus projetos de desenvolvimento. Salazar insistiu em apelar a "todos os homens, independentemente da sua origem e categoria, do seu credo religioso, de suas preferências de regime, de suas antigas filiações partidárias, para um trabalho de conjunto a bem da Nação".

Para dar cobertura a essa colaboração, o regime dispensou outras profissões de fé que não o "repúdio do comunismo" e apropriou-se eficazmente da cultura do patriotismo moderno desenvolvida por liberais e republicanos no século XIX. Utilizou a preeminência que todos atribuíam à inversão da "decadência" para pedir que o julgassem pelos resultados, não pelos meios. A cultura política das elites portuguesas, para quem a liberdade se tornara secundária em relação ao desenvolvimento, estava desarmada de argumentos, tanto à direita como à esquerda, perante uma ditadura bem sucedida. Significativamente, os momentos de maior contestação e incerteza do regime coincidiram com dificuldades financeiras, quando pareceu incapaz de proporcionar a prosperidade que prometia (em 1945-1949, por exemplo).

Entre 1928 e 1968, o poder de Salazar não foi sempre o mesmo, nem o pessoal que o rodeou. Mas o salazarismo conseguiu parecer, em várias épocas, simplesmente a organização das reduzidas elites sociais e intelectuais portuguesas - baseadas numa administração autocrática e centralizada, secundada pela Igreja e pelas Forças Armadas, e na subalternização política da população, já praticada por todos os regimes anteriores. É verdade que a decisão de o regime se manter pela força fazia dele a via única para quem queria exercer influência ou fazer carreira. Mas contou também a habilidade de Salazar. Soube usar as máximas da Antiguidade Clássica: o tirano podia ser suportável se desse ideia de que não dominava para interesse pessoal.

O "bom tirano" era, em primeiro lugar, um tirano sobre si próprio. E foi assim que Salazar se apresentou - sacrificado ao bem público, privado de ócios, de prazeres, de liberdade... Nunca ninguém contestou a sua honestidade pessoal. Ouvia muita gente. Fez do "equilíbrio de correntes" um princípio fundamental. Mas, por isso, também suscitou frustrações entre os seus seguidores. Para muitos, o Estado Novo era o que Marcelo Caetano disse francamente a Salazar em 1948: "Um mal menor que se suporta, mas a que não se adere."

O salazarismo gerou mais colaboração agnóstica do que adesão entusiasmada ou oposição intransigente. Só que, para desespero de Caetano, Salazar comportava-se como se isso lhe bastasse.

Um equívoco

Alguns dos líderes democráticos europeus ou americanos desculpavam Salazar, admitindo que talvez Portugal não pudesse produzir, em democracia, uma maioria anticomunista, como os outros países da Europa Ocidental. Era mesmo assim? A verdade é que, em 1975, nas primeiras eleições livres e com sufrágio universal, o país começou a provar o contrário. Mas Salazar nunca pensou recorrer à população em pé de igualdade com os seus adversários, apesar de lhes negar influência popular.

Por um lado, como explicou em fevereiro de 1946, a exigência de liberdade pela oposição de esquerda parecia-lhe um truque de guerra: "Sabemos bem que a exigem para vencer e a dispensam para governar." Por outro, descreu doutrinariamente das vantagens de submeter o poder à competição entre partidos num mercado eleitoral.

Os interesses podiam ser representados por corporações e o bem comum mais bem defendido por uma autoridade executiva independente. Anunciou ter descoberto uma fórmula política original, salvaguardando em simultâneo a direção do Estado e a autonomia da sociedade. A verdade, porém, é que nunca acabou de instalar este regime, supostamente alternativo tanto ao comunismo russo como à democracia liberal de tipo inglês e francês.

Ao passar pela direção da União Nacional na década de 50, Marcelo Caetano descobriu que o Governo era "a única realidade política ativa, apoiado no aparelho administrativo e nas polícias" (a administração expandir-se-ia de 30-40 mil funcionários na década de 30 para cerca de 200 mil na de 60). Adriano Moreira viu o Estado Novo como um edifício de presidências, conselhos, assembleias e outros "órgãos que não tinham funcionado nunca com responsabilidade própria e apenas estavam apontados na Constituição".

Tudo, de facto, se resumia à "chefia personalizada" de Salazar, que fundamentalmente conservou a estrutura de poder inicial: uma ditadura militar com um chefe de Governo civil que dirigia diretamente a censura e a polícia política. Em 1951, no congresso de Coimbra da União Nacional, Caetano perguntou abertamente: "O Estado Novo será verdadeiramente um regime ou não será mais do que o conjunto das condições adequadas ao exercício do Poder por um homem de excecional capacidade governativa?"

A maneira como Salazar manteve as fações do regime no ar, em órbitas incertas e inseguras à sua volta, não desfez a dúvida. Em setembro de 1966, observou a Franco Nogueira que, em Espanha, "o Franco está fazendo uma experiência, criando um princípio de caos, para depois ter fundamento para fazer regressar tudo ao começo e à sua autoridade". E, quanto a ele próprio, "não se me dava de um bocado de caos e confusão cá dentro, acho divertido".

O poder pessoal, exercido com tanta dureza como malícia, começou a parecer a muitos o motivo egoísta da ditadura. Significativamente, nenhum dos possíveis sucessores - e, portanto, potenciais rivais - do "chefe" alguma vez escapou ao saneamento. Em 1965, numa carta particular, Caetano, uma das vítimas, concluiu: "O Dr. Salazar não queria instaurar um regime, mas sustentar um equívoco que lhe permitisse governar, dividindo." Isto tinha uma implicação: a aglomeração de fações divididas poderia não sobreviver ao seu manipulador-em-chefe.

O salazarismo viveu de durar, mas para durar nunca pôde definir-se e estabilizar-se. Enquanto regime, nunca perdeu o ar de algo inacabado e impreciso, próximo do "começo" - e, portanto, também de um possível fim. Ao longo de décadas, foi mais uma "situação" (como aliás se dizia), um governo, do que propriamente um regime. O corporativismo, por exemplo, nunca saiu completamente do papel.

Para além dos compromissos originais, que exigiram sempre uma certa ambiguidade, o salazarismo foi surpreendido pela viragem de ambiente ideológico em 1945. Sofreu depois pelo modo como a transformação económica e social, de que precisou para se legitimar, fez desaparecer a sociedade rural e hierarquizada. Na década de 60, uma população escolar em expansão (o número de estudantes universitários duplicou então) protagonizou uma rutura geracional de valores.

O Vaticano II minou o clero mais conservador. Em 1970, 75 por cento da população tinha nascido depois da subida de Salazar ao poder: a comparação que para essa gente tinha sentido não era com os regimes anteriores, mas com outros regimes europeus. O crescimento da inflação, depois de 1965, prenunciou desequilíbrios. A pouco e pouco, tudo começou a precisar de ser refundado, como Marcelo Caetano tentou fazer depois de 1968.

A 12 de junho de 1968, "muito pálido, esmorecido", Salazar repetiu num Conselho de Ministros a exposição que fizera no do dia anterior. Nenhum dos ministros lhe chamou a atenção. Tinha então 79 anos de vida e 40 de poder. Queixava-se muitas vezes. Em abril de 1966, desabafara com Franco Nogueira: "Estou perdendo faculdades. Não posso trabalhar como dantes. Já não acompanho os ministérios, e os ministros fazem o que querem." Mas não estava preparado para sair de cena. Tinha mesmo arranjado, com a opção de manter a administração portuguesa em África, uma última amarra ao poder. O homem creditado com ter poupado o país à II Guerra Mundial envolveu-o então no maior esforço militar de uma nação ocidental desde 1945.

O colonialismo não começou com Salazar. Liberais e republicanos tinham viabilizado as colónias, submetendo as populações ao trabalho forçado administrado pelo Estado. Em 1961, Salazar consentiu que Adriano Moreira pusesse fim à sujeição dos "pretitos", como dizia. Mas decidiu que Portugal seria a exceção entre as potências coloniais europeias. Fê-lo, muito provavelmente, para cancelar a perspetiva de uma "normalização" à maneira ocidental que, em 1961, perante a pressão anticolonial dos EUA, seduziu a hierarquia do Exército.

Explorou então uma mística histórica, assente na presumida atualidade da expansão ultramarina, que levou Eduardo Lourenço a admitir que "o Portugal de Salazar foi o último que se assumiu e viveu como um destino". Mas era o destino de um beco sem saída, que reduziu de vez o regime a um enorme castelo no ar. Por isso, o salazarismo, se bem que tivesse sido capaz de organizar uma sucessão interna em 1968, já não conseguiu, ao contrário do franquismo em Espanha, enquadrar uma transição democrática. Terminou num enorme fracasso, como acontecera aos regimes anteriores.

Numa quinta-feira de céu cinzento, a 25 de abril de 1974, tudo foi derrubado como um cenário de papelão. Nenhum movimento político importante reivindicou, desde então, as ideias de Salazar. Em 2007, a sua vitória num concurso televisivo foi mais um sinal de iconoclastia, contra o velho antifascismo oficial, do que de saudosismo. Falamos dele, mas é isso: falamos. Valem-lhe os antifascistas para o conservar ameaçadoramente "vivo". Terá ele imaginado este fiasco final? Nos seus últimos anos de vida, entre 1968 e 1970, não lhe disseram que fora substituído no Governo, mas, como notou Adriano Moreira, ele também não perguntou. Nunca quis saber o resto da história.

Texto publicado no Actual da edição do Expresso de 24 de Julho de 2010