ARQUIVO Regicídio

Mitos carbonários

Das origens antigas da Carbonária até aos valores da sociedade secreta que esteve por detrás do regicídio. 

José Gabriel Viegas

Poucas organizações políticas, secretas ou não, terão sido tão ricas em fantasmas e mitos. Apesar da notoriedade de que gozou no Ocidente, ao longo de todo o século XIX e, mesmo, até aos nossos dias, as suas verdadeiras origens, estruturas e objectivos permanecem envoltos numa vasta nebulosa de suposições e contradições. E, se se conhece bem a gestação e métodos da Carbonária Portuguesa de Luz de Almeida, responsável pelo regicídio de 2007, o mesmo não sucede quanto à história da sociedade a que foi buscar o nome. Vilipendiados por uns, exaltados por outros, os "carbonari" ficaram na história como os grandes protagonistas da epopeia dos nacionalismos republicanos da Europa do Sul e da América Latina. Na realidade, essa fama é sobretudo criada pelos "restauracionistas", na ressaca da Revolução Francesa e da aventura napoleónica, que classificam com uma etiqueta única a imensa nebulosa das sociedades secretas revolucionárias que vão agitar todo século XIX.

Por outro lado, é também importante notar que só recentemente metodologias históricas são de facto aplicadas nos estudos sobre este tipo de sociedades secretas, até agora vistas sobretudo à luz de textos apologéticos ou da propaganda adversa.

Foram atribuídas à Carbonária múltiplas origens míticas, algumas das quais ainda hoje são aceites como boas, indo dos "carbonari" do século XIII (os Guelfos, que defendiam o poder pontifical contra os Gibelinos, partidários do Império), até aos Druidas celtas e a Salomão. Outras teses fazem-na descender das sociedades dos "Bons Cousins Charbonniers", lenhadores e "carvoeiros" franceses, das florestas do Jura e da Franche-Comté, organizados à semelhança de muitas outras guildas e confrarias de ofícios medievais e que tinham como padroeiro S. Teobaldo. Mas essas sociedades são muito anteriores ao fenómeno político do "carbonarismo" italiano ou francês de novecentos.

Embora muitos autores considerem que a Carbonária tinha as suas origens remotas em Itália, de onde teria passado a França e Espanha, mais tarde a Portugal, parece mais credível a tese de que se trata de uma criação política, em 1808, de Felippo de Buonarroti - admirador da República das Virtudes de Robespierre, exilado de França depois de ter participado na tentativa da chamada Revolução dos Iguais, contra o Directório.

Os primeiros carbonários teriam sido, assim, sobretudo antibonapartistas, na sua maioria  italianos, que se opunham a Joachim Murat, imposto como rei de Nápoles por Napoleão. Inicialmente dominado por militares, incluindo oficiais de altas patentes, o movimento estende-se rapidamente a outras regiões de Itália, designadamente aos Estados Pontíficos, onde se implanta com sucesso. É de referir o caracter assumidamente cristão desse carbonarismo, com rituais muito sumariamente adaptados dos rituais maçónicos - em que, por exemplo, o termo "iniciação" é substituído por "baptismo", o de "profano" por "pagão", em que abundam os símbolos crísticos, como a coroa de espinhos e em que os "trabalhos" são conduzidos sob os auspícios de S. Teobaldo e à glória de Jesus Cristo.

Esse carácter crístico é, aliás, salientado num documento atribuído a Joseph Briot, um dos fundadores da Carbonária italiana: "É impossível que em Itália as inclinações religiosas permaneçam inteiramente estranhas a uma instituição tal como a Carbonária. A descrença foi muitas vezes associada ao amor pela liberdade e ao ódio à  opressão. Os Carbonários, ao contrário, mostram uma fé sincera na religião de Jesus, a que se encontra no Evangelho, liberta de todos os elementos estranhos que os teólogos têm introduzido em dezoito séculos". É assim que vários autores encontram nas primeiras Carbonárias sinais dos diversos fundamentalismos medievais cristãos, associados a uma proposta política baseada no regresso aos valores essenciais do cristianismo primitivo - pondo em causa os retrocessos sociais do restauracionismo, assim como os faustos do Vaticano. Esse carácter cristão ir-se-á progressivamente esbatendo ao longo do século XIX na maioria da sociedades secretas ditas carbonárias, passando para certas formas de panteísmo nalguns casos, aceitando o agnosticismo e privilegiando cada vez mais a acção política radical - mas mantendo sempre, curiosamente, a simbologia crística introduzida por Buonarrotti de par e variando, segundo os casos, com enxertos da maçonaria dita "egípcia" de Cagliostro, alguns elementos de neo-pitagorismo e, mais tarde,  de influências teosóficas.

Grosso modo, esta foi a tendência observada em Portugal, onde a Carbonária Lusitana do General Joaquim Pereira Marinho, fundada em Coimbra em1842 (ou 1848), na linha dos "carbonari" italianos e sob a influência ideológica de Mazzini, "assume uma visão religiosa do mundo e da vida", como salienta historiadora Maria Manuela Tavares Ribeiro. E que subsistirá ainda, 60 anos mais tarde, na Carbonária Portuguesa de Luz de Almeida e Machado Santos, com a exaltação do sacrifício e de uma certa forma de  martírio pessoal, inclusive até à morte.

Versão integral do artigo publicado na edição do Expresso de 2 de Fevereiro de 2008, Actual, página 18.