ARQUIVO Regicídio

D. Carlos, o mal-amado

D. Carlos foi amado e odiado, quase com a mesma paixão. A maior parte dos políticos viam-no como um homem distante, imune às lisonjas do poder. Para outros, não passava de um "bon vivant", delapidando em caçadas e banquetes o erário público.

Margarida Magalhães Ramalho

Filho primogénito do rei D. Luís I e da rainha D. Maria Pia de Sabóia, D. Carlos nasceu no palácio da Ajuda, a 28 de Setembro de 1863. Sobre este acontecimento escreveu Rodrigues Sampaio no "Revolução de Setembro": "É muito o regozijo de uma família, o contentamento dos paes, a alegria dos parentes mas, é mais ainda, a fiança da paz, a tranquilidade do futuro de um povo, o hino no meio das tormentas, fechado o abismo da monarquia, mortas as ambições. Não nasceu só um Príncipe mas a segurança da paz. Desaparece a incerteza, o receio o terror; renasce a confiança.".

Para o ilustre defensor do liberalismo, o novo príncipe era, então, a esperança no futuro e o garante contra as pretensões absolutistas de D. Miguel, que, com algum apoio em Portugal, continuava a reivindicar a coroa. 44 anos mais tarde, já rei, "estava pronto para o matadouro" como ridicularizou Leal da Câmara numa capa da revista humorística francesa "l'Assiette au Beurre".

Educado nos cânones do constitucionalismo, D. Carlos manter-se-á fiel a estes princípios, apesar da a turbulência que marcou o seu reinado. Em 1883, assume, pela primeira vez, a regência do reino, durante uma visita dos pais a Madrid. Em Maio de 1886 casa com a princesa Amélia de Orleães, filha do conde de Paris, chefe da casa real francesa. No ano seguinte nasce o primeiro filho, o príncipe Luís Filipe. Um ano mais tarde, em Vila Viçosa nasce, prematuramente, a segunda filha do casal, a princesa Maria Ana, que viverá, apenas, duas horas. Em Novembro de 1889, nasce o príncipe D. Manuel que virá a ser o último monarca português.Com a morte de D. Luís, a 19 de Outubro desse ano, D. Carlos é aclamado rei, num ambiente de grandes esperanças. Contudo, pouco dias depois, o país é varrido pelo terramoto político-diplomático do Ultimato Inglês. O rei e a própria monarquia são associados à cedência aos britânicos, quando, na verdade, o ultimato resultara de anos de fuga para a frente da diplomacia portuguesa. Um ano depois, a 31 de Janeiro, na cidade do Porto, dá-se o primeiro ensaio de implantação da república pela força das armas. Apesar de sufocada, esta revolta dava o mote para o resto do reinado.

Bode expiatório de um sistema político inoperante e corrupto, a monarquia é contestada até ao limite. Pela primeira vez na história portuguesa, as figuras do rei e da família real são ridicularizadas na imprensa, em panfletos, livros e caricaturas. Levada ao rubro por discursos inflamados e uma campanha orquestrada de boatos, a população das cidades começa a ver na monarquia a fonte de todos os males.

Mesmo assim, o rei vai levar a cabo algumas reformas, consolidar a soberania sobre os territórios africanos e estreitar ligações diplomáticas com os principais Estados europeus. Em 1907, o debate parlamentar torna-se impossível, com desacatos quase sempre instigados pelos republicanos. Dissolve o parlamento e autoriza João Franco a governar temporariamente por decreto. É a "ditadura" franquista. São impostas restrições à liberdade de imprensa. A 28 de Janeiro de 1908, em Lisboa, nova tentativa republicana falhada leva à prisão ou fuga de alguns dos mais populares tribunos, bem como de monárquicos dissidentes. Um decreto, assinado pelo rei dois dias depois, permitia expulsar do reino os implicados no golpe levou os ânimos dos círculos oposicionistas ao rubro. Um comando de elementos da Carbonária, sociedade radical secreta, mata o monarca e o príncipe herdeiro, a 1 de Fevereiro no Terreiro do Paço. Nesse dia, o país perdeu, também, um pintor de qualidade, um fotógrafo e um homem de ciência.

D. Carlos foi amado e odiado, quase com a mesma paixão. A maior parte dos políticos viam-no como um homem distante, que parecia, desprezá-los e ser imune às lisonjas do poder. Para outros, não passava de um "bon vivant", delapidando em caçadas e banquetes o erário público. Os seus admiradores retratavam-no como um homem afável e humano para com os mais humildes, referindo episódios como este: tendo estado a trabalhar até tarde, tirou as botas e foi descalço para o quarto, para não acordar o criado, adormecido na cadeira.