ARQUIVO José Saramago (1922-2010)

Um ano sem Saramago

O Nobel português de Literatura morreu a 18 de junho do ano passado. Pilar del Río, viúva do escritor, explica como é que se vive pelo ausente.
Os dias felizes do casal em Lanzarote
Ana Baião



"ZÉ SARAMAGO NO ERA UN NIÑO VAGO

JUGABA SOLO NO CON LOS DEMÁS

Y CON EL TIEMPO SE VOLVIÓ UN GRAN MAGO

QUE HACE QUE PENSEMOS MÁS"



Estas palavras, cantadas no México por Sofía Álvarez, grande atriz e contista, diante de cerca de duas mil crianças, foram o momento mágico do ano. Perguntava Sofía como era Saramago, e as crianças respondiam que era "um mago que nos pôs a pensar". Os miúdos, que haviam visto a curta-metragem "A Maior Flor doMundo" e lido "O Conto da Ilha Desconhecida", estavam no grande auditório convidados pela Feira do Livro de Guadalajara, que também realizou sessões especiais sobre o escritor português e apresentou um livro onde homens e mulheres de letras elegeram o seu Saramago preferido e explicaram as razões da sua opção. "Porque soa bendito, como o mar", disse Ángeles Mastretta, que partilhava páginas com escritores dos dois lados do oceano. Era novembro, era México, era a feira que Saramago tanto visitou que o recordava com esmero. Como já tinham feito outros países.

O primeiro ano sem Saramago começou às 11h30 do dia 18 de junho de 2010, quando os médicos Gracia Lanzas e Domingo Guzmán se olharam e ela, após um leve assentimento do companheiro, pronunciou as palavras que ninguém na casa queria ouvir: "Hora da morte, 11h30." Aí começou a vida sem Saramago, embora Saramago continuasse a ser o centro de todos os passos, de todas as palavras e de todos os abraços, o centro do mundo para aqueles que já nada podiam fazer, nem acrescentar uma palavra, nem mostrar o sorriso que ficou adiado, nem sentir o apertar de mãos, gesto impossível. Saramago havia morrido, e essa palavra - morte - é definitiva.

Nesse dia, a essa hora, começou também uma viagem diferente para os que haviam convivido com Saramago, mas, apesar do terrível peso da realidade, que esmaga, e de que maneira, os que rodeavam Saramago levantaram a cabeça, deixaram que as lágrimas corressem por dentro e fizeram o que estava combinado: viver também pelo ausente, tê-lo sempre no coração, no sangue, nos livros, nas conversas e nos brindes. Não morrerá de todo quem está tão presente namemória, disseram-se mutuamente e começaram a contar o tempo.

Um ano já sem Saramago. Como é possível, perguntar-se-ão alguns, se continua a publicar livros, se está nas conversas dos analistas políticos, se os jovens saem à rua com as suas frases escritas em cartazes ou em t-shirts, se há concertos de rock onde o aplaudem ou se organizam outros de música erudita em seu nome? Que estranha ausência é essa? Mas é estranha apenas para quem não compreendera o espírito transgressor de José Saramago, homem tímido e retraído, que, no entanto, era audaz nas suas abordagens vitais, literárias e intelectuais, destemido até, que nunca baixou a cabeça, que sempre seguiu o seu caminho sem se preocupar com costumes ou modas, sem medir as consequências cias dos seus atos desde que estes não afetassem terceiros, porque o respeito pelo outro, tratando-se de Saramago, era um dado adquirido. Sim, era um transgressor de todas as normas e convenções, por isso também o seu funeral seria diferente, porque diferente foi a sua vida.

O avião que transladaria o corpo de José Saramago chegou a Lanzarote perto da meia-noite do dia 18 para sair no dia seguinte de manhã, já com a sua carga singular, o caixão e os amigos mais próximos do escritor. Para se despedirem dele, a Fundação César Manrique convidou os ilhéus a que deixassem as suas casas e o trabalho, descessem à rua e lessem em voz alta fragmentos dos livros que Saramago escreveu em Lanzarote, de modo a que a última saída da ilha fosse acompanhada pelo eco da sua voz. Depois, quando o avião aterrou em Lisboa, outra surpresa aconteceu: pessoas erguendo livros, levantando-os do chão como Saramago havia levantado a vida de tantas pessoas humildes nas suas diversas ficções e, sobretudo, na sua escolha dileta. Após a cerimónia na Câmara Municipal, o cortejo partiu para o cemitério. Ali foi o adeus definitivo: um grupo de pessoas dentro da sala do crematório celebrou o facto de ter partilhado a intimidade de um homem grande, enquanto lá fora havia um mar de livros e de cravos vermelhos, dois símbolos que engrandecem quem homenageia e quem é homenageado.

Horas mais tarde, no avião que levava a Madrid um grupo de amigos que tinham viajado até Lisboa para se despedirem de Saramago, tomou-se uma decisão, que foi cumprida sem falhas: seguir o ritual estabelecido em "O Ano da Morte de Ricardo Reis".

Se a morte, segundo Saramago nesse livro, não é definitiva até que decorram nove meses, que são os que se levam para nascer, todos os dias 18, até março, haveria que realizar encontros de celebração em lugares vários para ler Saramago e brindar pelo homem que deu personalidade à sua época. Em Granada cantaram-se poemas, ouviu-se no meio da neve o som de instrumentos renascentistas, enquanto uma voz lia o discurso do Prémio Nobel: "O homem mais sábio que conheci não sabia ler nem escrever", e por uns instantes neto e avô assomaram por entre as oliveiras.

Em Madrid apresentou-se o livro "Saramago nas Suas Palavras", de Fernando Gómez Aguilera, e, para fazer suas estas palavras, personalidades do mundo da cultura, da universidade, da justiça, escritores e jornalistas acudiram ao encontro. O juiz Garzón, a atriz Aitana Sánchez Gijón, o compositor Emilio Aragón, o ex-presidente do Parlamento Europeu Enrique Barón, a pintora Sofía Gandarias e Pilar Manjón, porta-voz das vítimas do atentado terrorista de 11 de março emMadrid, sublinharam com as suas vozes o que ao longo do tempo Saramago vinha dizendo.

Seguiu-se Barcelona, com Paco Ibañez cantando.

E em Lisboa, a cada dia 18, pela tarde, junto à Casa dos Bicos, leu-se e agradeceu-se a fortuna de ser compatriota de Saramago. Na Feira do Livro de Frankfurt e em Turim tiveram também lugar sessões celebrando a sua memória. A Feira de Sevilha foi dedicada integralmente ao autor de "A Viagem do Elefante", livro escolhido para assinalar o quinquagésimo aniversário da Fundação Santillana, numa edição especial ilustrada por Manuel Estrada e apresentada em Madrid com todas as honras.

E no Brasil: "Quantas vezes pode um homem enterrar o pai?", perguntou-se o editor brasileiro, e não pôde continuar nem responder a si mesmo porque as lágrimas lhe roubaram a voz e apenas os aplausos das pessoas encheram o tempo. Até que começou o espetáculo "Vozes de Mulher na Obra de Saramago", mulheres conversando para suster o mundo na sua órbita, um homem dizendo que assume essas vozes, Chico Buarque de seu nome, e esse mesmo espetáculo foi representado no Teatro das Belas Artes da Cidade do México e será oferecido a 18 de junho por uma cadeia de televisão nacional, precisamente quando em Portugal estiver a ser exibido "José e Pilar", o filme que conta os últimos anos de Saramago, a sua relação com o mundo, as ideias que o preocupavam, o trabalho como motor diário, e sempre pensar, pensar, pensar... O filme mostra o que apenas os muito íntimos sabiam do autor de "Memorial do Convento", de "Evangelho segundo Jesus Cristo" e de "Caim". E dos dois livros de textos do blogue, a sua bússola pessoal: "O blogue vai iluminando o caminho do autor", dizia José Saramago.

Neste primeiro ano sem Saramago continuaram a publicar-se os seus livros de acordo com o calendário estabelecido quando era vivo e falava com a sua agente e com os editoresmais próximos. Anuncia-se para o outono a publicação do seu segundo livro de juventude, "Clarabóia", esse que dormiu o sono dos justos quase quarenta anos sem que Saramago recebesse resposta alguma e que, quando o jovem que o escreveu era já um homem maduro e havia publicado grandes livros, a editora quis dar à estampa. Saramago disse que enquanto vivesse não seria publicado, embora tivesse consciência de que o livro veria a luz do dia, porque é umpresente que os seus leitores merecem. Aparecerão também em breve as páginas que tinha escritas de um romance complexo, tão difícil como necessário: "Alabardas, Alabardas, Espingardas, Espingardas", um verso de Gil Vicente, uma outra forma que Saramago encontrou de ser a ponte entre os clássicos e os leitores contemporâneos, assim o seu Camões em "Que Farei com Este Livro?", ou as contínuas referências ao padre António Vieira, Pessoa, Garrett ou Eça, o inventor do romance moderno. Ou Raul Brandão, Almada Negreiros, ou os seus contemporâneos, Jorge de Sena, Rodrigues Miguéis, entre outros, autores de que a fundação deve cuidar, porque também está feita para isso.

O ano sem Saramago foi especial para a fundação que leva o seu nome. Ainda que não tenha nascido para contemplar o seu fundador, como ele mesmo deixou escrito na sua declaração de princípios, não pôde senão dedicar o seu tempo a agradecer manifestações de pesar, a responder às mais diversas solicitações, a partilhar demonstrações de afeto, a manter a sua agenda apesar do desconcerto da morte. Por estes dias de junho será anunciado o vencedor do Prémio de Fotografia "Retratar Um Livro", fórmula simples de recuperar livros para a leitura, aplicando-lhes técnicas vanguardistas. "Nome de Guerra", de Almada Negreiros, foi o livro proposto para a primeira edição do prémio. Seguir-se-á "A Escola do Paraíso", de Rodrigues Miguéis, livro que nas palavras de Saramago deveria estudar-se nas escolas, em vez do seu "Memorial do Convento", porque os alunos conhecer-se-ão melhor ao saber de onde vêm, de que mundo, de que arte.

A fundação compilou textos escritos por todo o mundo por altura de 18 de junho passado, que serão editados pela Caminho com o título "Palavras para José Saramago". A leitura desses textos dá uma imagem do que foi para a cultura, e não só, a morte de Saramago. Aí se verá o respeito - à exceção do órgão oficial do Vaticano - com que meios de comunicação de diferentes tendências acolheram a notícia, porque, de acordo ou não com os seus princípios políticos, sabiam que havia morrido um homem honesto, "A voz dos sem voz", titulou um jornal basco.

O livro, que sairá no dia 18, é também uma forma de agradecer: devolver os textos que nasceram para jornais e revistas em forma de livro é dar-lhes uma nova vida e é dizer aos seus autores que foram lidos, entendidos e acolhidos no coração.

Ao longo deste ano multiplicaram-se os atos de homenagem, as leituras, os concertos. O programa encerrará no Grande Auditório do CCB no dia 19 pela tarde, quando, por iniciativa daministra da Cultura, se interpretará "As Sete Últimas Palavras de Cristo na Cruz", de Haydn, com sete textos de José Saramago, escritos a convite de Jordi Savall e com conceção de cena de Teresa Villaverde, em estreia absoluta em Portugal. E, na noite do dia 18, a SIC exibirá o filme "José e Pilar", que, à mesma hora, estará a ser projetado na Cinemateca Portuguesa, com a presença do realizador. E antes, ai, as cinzas de José Saramago serão depositadas diante do rio, junto à Casa dos Bicos, frente ao lugar que iria ser o seu escritório e que não chegou a ver terminado.

Outros o verão por ele, esse é o compromisso. Haverá uma oliveira de Azinhaga, a terra natal de Saramago, uma pedra em que se lerá o epitáfio que Saramago escreveu para Baltasar no "Memorial do Convento" ("Mas não subiu para as estrelas se à terra pertencia") e um banco para que as pessoas possam sentar-se e ver passar os barcos que Saramago não verá, sentir a sua presença, ler umas páginas, talvez um poema, e saber que nem tudo está perdido.

Neste ano duro e agitado, de crise económica e de manifestações de jovens em Portugal e em Espanha, em que cidadãos de países do Norte de África se sublevaram contra sátrapas ou contra a economia de mercado que provoca o pânico nas pessoas e nas famílias, sentiu-se de forma especial a ausência de Saramago. Compensada, em parte, por leituras dos seus textos, os do blogue, os de "Saramago nas Suas Palavras", ou fragmentos de "Ensaio sobre a Lucidez", sobretudo. "Que diria Saramago sobre isto?" foi uma pergunta constante, embora ninguém possa interpretar Saramago, dizer se estaria eufórico, se sentiria medo ou se a esperança andaria no seu coração. Não o sabemos, não poderemos sabê-lo nunca. A única coisa que permanece clara são os seus escritos, também a sua biblioteca e a sua casa em Lanzarote, abertas a visita pública todas as manhãs, porque esse legado é demasiado grande para que não seja partilhado.

E assim, lendo os seus livros e recordando vivências, decorreu umano de ausências íntimas e de presença pública. Aproxima-se o aniversário do português que veio ao mundo para pôr nele um pouco de harmonia. E conseguiu. Por isso, nestes dias, o recordamos com a força de um amor primeiro.

Texto Pilar del Río

(Pilar del Río é jornalista e presidenta da Fundação José Saramago)





Artigo publicado na edição do Actual de 03/06/2011