"Digam o que disserem, o dinheiro sujo mata a fome tal como o limpo" "A Rainha do Sul", Arturo Pérez-Reverte
A estação das chuvas é generosa na Guiné-Bissau. Empapa um país pantanoso. O caminho para o bairro Áfia, nos arredores da capital, faz-se aos solavancos por terra batida, leitos de água, chuva pesada. Entre meia dúzia de casas em adobe, destaca-se o amarelo de uma habitação com dois carros à porta.
Pertence a um sargento da Marinha detido em Dacar. A filha, Umu Aruna, cabelo desfrisado, bolsinha "tigreza" na mão, prepara-se para sair. Alta e reservada, nega saber as razões da ausência do pai. Diz que, após duas semanas de procura, a mãe descobriu por acaso que ele estava numa prisão senegalesa. E nada mais. Sobre o sargento cai a suspeita de envolvimento no tráfico de duas toneladas de cocaína que terão zarpado de barco de Bissau, mas interceptadas e queimadas em Dacar.
O encarregado de negócios dos EUA no Senegal, Jay Smith, assistiu à queima dessa cocaína. "Os senegaleses estão a tentar travar este trânsito, mas com um vizinho por onde passam enormes quantidades e sem meios de interdição é uma grande preocupação", afirma. O responsável pelo gabinete da Interpol em Bissau, Calvário Ahukharié, garante que o barco suspeito "esteve três meses nos portos da cidade", mas nada terá sido feito para travar a viagem.
Calvário tem uma vida difícil. No seu minúsculo gabinete, por onde deveriam circular informações preciosas, não se passa nada. Os computadores estão desligados porque os painéis solares avariaram. "Não temos meios para aguentar esta luta, o povo pede, mas, como vêem, não conseguimos ir mais além."
Na Marinha não há uma palavra nem sobre a situação do sargento, nem sobre a vigilância nas águas territoriais. O quartel-general é um labirinto de corredores escuros e silenciosos. Como se o abandono andasse por aqui.
Os militares estão na mira das suspeitas por falta de empenhamento. Por alegado envolvimento. Em Abril, um capitão e um soldado foram surpreendidos à paisana num jeep que transportava 634 quilos de cocaína. Arsénio Baldé, porta-voz do Ministério da Defesa, afirma que esses dois militares disseram que "tinham pedido boleia", por isso defende os seus pares: "Ninguém recebe instruções para ir fazer tráfico de droga, se alguém o fizer é em nome próprio." Baldé garante que nunca viu cocaína e que o seu salário apenas lhe permite viver com dificuldades. Atira uma hipótese para os sinais exteriores de riqueza que se vêem em Bissau : "Se calhar ganharam a lotaria...!" Nino Vieira, o Presidente, não precisa da lotaria. Já se move num Hummer preto com um pequeno cisne de croché no tabliê. Recusa as alegadas cumplicidades de altas esferas do Estado no narcotráfico. "Não sei, não posso acusar ninguém." Mas vai sublinhando que aproveitou o momento em que José Sócrates o convidou para a cimeira UE/África para pedir um forte apoio do Governo português no combate ao flagelo.
À espera de milagres
O brinco à Ronaldo brilha na orelha de Justino. Só é ofuscado pelo branco cintilante dos dentes que exibe entre gargalhadas. Tem tempo, tem vida, mas nada para fazer, circulando com outros adolescentes pelas bancas do mercado do Bandim. Estão disponíveis, muito disponíveis. Cocaína para uso está fora de questão, não há moeda que a sustente. Aqui consome-se liamba. Mas cocaína para vender é outra conversa.
Raul Neves, sociólogo guineense, fez um estudo sobre o consumo e o tráfico de cocaína entre os jovens. Em cada 10, seis assumiram que a venderiam. Fancine Bandé, 25 anos, testemunha a infiltração do pó: "A situação é alarmante, começa a penetrar nos mercados, nos táxis, nos toca-toca." O desemprego alucinante, a pobreza, a falta de estruturas abrem portas a que até se considere o narcotráfico um factor de desenvolvimento. Gera mais dinheiro.
Samanta Fernandes,17 anos, estudante, junta-se a Fancine e a outros jovens que tentam "fazer barulho" à volta do problema.
"O tráfico pode apanhar os que têm uma ilusão muito grande em conseguir coisas com milagres, não por esforço próprio." A ideia é partilhada por João Teixeira, 19 anos, que sonha estudar engenharia física na Rússia para depois trabalhar no petróleo. O rótulo de narco-Estado pesa-lhe demasiado. "Afecta-me porque, se eu conseguir ir estudar no estrangeiro, as pessoas vão logo dizer: é guineense, o país dele é um narco-Estado, talvez ele esteja envolvido."
Apesar dos magros recursos, a Polícia Judiciária apreendeu no último ano mais de 1.300 quilos de cocaína. A fragilidade dos meios permite muito pouco, e as máfias surgem hoje como grupos espontâneos que flutuam por vários países. "As relações entre criminosos são de conveniência, de 'business ventures', não há uma identificação do criminoso em relação ao grupo, mas só através da actividade", afirma Amado de Andrés, um dos responsáveis em Dacar pela Agência da ONU contra a Droga e o Crime. O representante americano no Senegal não hesita em dizer que "neste momento a situação na Guiné-Bissau está fora de controle, e isso preocupa-nos porque tudo o que implique cartéis de droga, seja onde for, é uma ameaça para nós nos EUA".
No centro de Bissau, Flora Gomes, cineasta guineense, cruza a praça da pastelaria Bayana, depois de sair do Centro Cultural francês. Num país onde não existe um cinema ou uma livraria, os centros culturais estrangeiros são procurados por quem quer alargar horizontes. Mas todos os dias, pela manhã, Flora debate-se com a dura realidade: sem água nem luz, desce do primeiro andar em que vive com bidões de 20 litros para ir buscar água. Pela praça da Bayana passam Porsche Cayenne, jeeps BMW, Mercedes, carros de luxo que Flora aprecia. Mas, ironiza, "também gostava de ver boas escolas, bons hospitais..." E tem receio de que este brilho vertiginoso cegue: "A tentação é grande... É muito grande! É quase como um mudar de óculos em que num momento a pessoa se torna muito rica, fica cega e pode ser uma desgraça para o país."
Em pleno centro da cidade caem pedaços de rua, de repente nascem crateras enormes. O mercado central continua em agonia desde o bombardeamento de 1998. As bancas saltaram para a rua. Vende-se tudo. E muitos cartões de recarga para telemóveis.
Polícias sem algemas
Sana Camara, subinspector, faz parte do grupo de 50 agentes que se espalham pelas caducas instalações da PJ. Tentam contrariar a maré branca que invadiu a Guiné-Bissau. "Nós aqui trabalhamos com a nossa própria vontade", diz o subinspector. É tudo o que têm. O resto são faltas: não há viaturas, armas, telefones, computadores, comunicações, algemas, meios para recolher impressões digitais.
A Guiné-Bissau é o único país da África Ocidental onde não existe uma prisão. Mesmo assim, Sana Camara mostra orgulhosamente o camião-cisterna, estacionado no pátio da PJ, recentemente apreendido no Sul do país com combustível para avião. "Não temos nenhuma frota de aviões. Nos últimos tempos os únicos aviões que sobrevoam o nosso espaço aéreo são esses que aterram em Catió, em Buba. Estão ligados ao narcotráfico, toda a gente sabe."
Sana e os colegas são comandados por uma mulher delgada mas enérgica. Lucinda Barbosa é a terceira directora da PJ este ano. A função escalda, mas ela não lhe recusa a face. Nem quando as ameaças lhe chegam a casa, como aconteceu com a detenção de dois colombianos, este Verão, em que disseram ao irmão para ela largar o caso porque muitas pessoas já tinham falecido por quererem mudar o país. "Isso não me mete medo", afirma no seu acanhado gabinete, enquanto vasculha na mala cartões de recarga de telemóvel, a única forma de manter contacto com os seus homens. "Por vezes até há interferências, até parece que, em vez de ser a polícia a escutar, são outras pessoas a fazer escutas aos polícias." Determinada, Lucinda diz que a PJ não vai baixar os braços, apesar de todas as carências, e lamenta a falta de resultados. "Há alguma impunidade porque não tem havido condenações."
Os traficantes sabem com quem podem contar. "Trata-se de cidadãos estrangeiros. Como é que eles estariam na Guiné se não conhecessem cá ninguém?", interroga a ministra da Justiça. Carmelita Pires teme pela falta de protecção de quem está envolvido no combate ao tráfico e acha que está na hora de a comunidade internacional passar dos conselhos aos actos.
Entre os corredores e gabinetes da PJ, o tempo parou. Espalha-se um som antigo, do matraquear da máquina de escrever em documentos estufados a papel químico, num país onde não há água nem luz. Ao abandono. Por muitas suspeitas ou denúncias que cheguem ao piquete a funcionar 24 horas por dia, poucas poderão ter resposta. E os traficantes sabem isso. Amado de Andrés, ironiza : "Se eu fosse traficante de cocaína e tivesse de escolher um país no mundo, escolhia a Guiné-Bissau."
É em Dacar que se cruzam informações entre FBI, Interpol, polícias europeias e africanas, e as autoridades interessadas em combater o narcotráfico que alastra pela África Ocidental. "É como um cancro", qualifica o encarregado de negócios dos EUA em Dacar. Por isso a DEA (Drug Enforcement Administration) mantém elementos a circular pela zona.
A nova rota africana com destino à Europa é uma resposta ao aumento da vigilância policial no Atlântico Norte. "Os traficantes procuram caminhos em que a polícia esteja menos atenta, com menos policiamento marítimo e em que a rota seja rápida. É uma rota muito importante que traz grandes preocupações à comunidade internacional", lembra Alípio Ribeiro, director da PJ portuguesa. Nos primeiros nove meses deste ano foram apreendidas mais de cinco toneladas de cocaína na África Ocidental, 30% da qual terá passado pela Guiné-Bissau. O que leva Amado Andrés e Jay Smith a afirmarem: "A Guiné-Bissau ainda não é mas está à beira de se tornar um narco-Estado."
Colombianos em Bissau
Um Jaguar metalizado desliza pela terra batida do Bairro Militar. Passa à porta de uma casa onde uma mulher faz trancinhas na carapinha de outra, sentadas à sombra do capim do telhado. Do outro lado da rua, uma cancela barra a entrada da Somec, uma empresa que já foi portuguesa. É guardada por dois seguranças. Pergunto por Juan Pablo Camacho, um colombiano recentemente chegado a Bissau. Os seguranças são evasivos. Dizem que não está de momento, que não sabem, que saiu.
Juan Pablo é encarado em Bissau com um certo mistério, curiosidade e intriga. O colombiano há-de abrir-nos a porta de sua casa dias mais tarde quando nos encontramos de novo junto à cancela da Somec. Chega num BMW preto com matrícula de Julho deste ano. Afável e impecável na sua calça preta vincada, camisa branca com botão de punho dourado, gravata cinzenta, barba aparada. Quando entra na sala salta-lhe para o colo um macaco de fralda a que chama Primo. Miriam, a empregada, é chamada por tudo e por nada: "Miriam, muda a fralda ao Primo!" Sobre a mesa descansa o portátil. Ao lado dos sofás de pinho, um cofre com mais de metro e meio de altura.
O destino guineense de Juan Pablo Camacho desenhou-se na Venezuela, onde se encontrou com Pedro Ortega, um espanhol que o colombiano considera português. O convite foi tentador - relançar a moribunda Somec, devastada pela guerra civil de 98, dar-lhe nova garra na importação e venda de cimento, na construção e noutros projectos que Juan Pablo enumera: "Vamos fornecer água e energia aos moradores aqui do Bairro Militar, alfabetizá-los, dar recursos às mulheres que perderam os maridos..." E assim por diante.
Mas queixa-se do estigma dos colombianos para dizer que tudo não passa de "películas". O último filme passou-se em Agosto quando lhe entraram em casa elementos da PJ. Encontraram 94.500 Euros e um milhão e meio de francos CFA (cerca de 2.300 euros), a moeda corrente na Guiné, apreendidos e levados para o cofre da PJ, que tem metade do tamanho do de Juan Pablo. Um caso de branqueamento de capitais, considera a directora da PJ.
Juan Pablo chegou a Bissau com o cargo de director financeiro da Somec. Com ele vieram mais dois colombianos, Luís Mejia e Maurício Mejia, também com postos de direcção na empresa. Nas suas instalações foram encontradas armas, munições e "sprays" paralisantes antiagressão. Maurício estava em Portugal, onde tem residência, e sobre quem recaem suspeitas de envolvimento no tráfico de cocaína.
Luís e Juan Pablo foram detidos. Mas Juan Pablo livrou-se rapidamente da cela: contratou o bastonário guineense da Ordem dos Advogados, Armando Mango, que pediu a Pedro Ortega em Portugal documentos sobre a proveniência do dinheiro. O advogado conseguiu libertar o cliente a troco de uma apresentação diária e uma caução de cerca de 22 mil euros. O Ministério Público ainda sugeriu que a caução fosse retirada dos 94.500 euros apreendidos, mas a directora da PJ opôs-se. Então, Armando Mango recorreu a "pessoas amigas que foram dando um bocado, um bocado, até que se completou a quantia". Juan Pablo tem uma versão diferente para a recolha do dinheiro - atribui-o à venda de sucata. Na Somec as chamadas não param no telemóvel do colombiano, que mantém segredo sobre os seus amigos em Bissau. À excepção de Pedro Ortega, um dos donos da Somec guineense, que em Portugal foi arguido num processo por crimes de burla e apropriação de créditos.
Na capital guineense, Juan Pablo goza de uma protecção única, exibida pelo "Livre Trânsito Especial" passado pelo Ministério da Administração Interna e colocado no pára-brisas do seu BMW. Diz que a mulher e os cinco filhos, ainda em Bogotá, hão-de vir para Bissau, onde tenciona permanecer nos próximos anos. "Ela adora sa faris!", aliás, quase que justifica este seu interesse por África com a paixão da esposa pelo exotismo do continente.
O outro colombiano, Luís Mejia, passa os dias a ler debaixo de um mosquiteiro numa cela da PJ. Alto e delgado, barba feita, de calções e "t-shirt", está confiante em que voltará rapidamente ao trabalho. Sustenta essa confiança no advogado que contratou: "É da equipa de advogados da Presidência." Queixa-se das condições em que se encontra, diz que há muita corrupção no país e que "narcotráfico há por todo o lado", embora negue qualquer ligação a esse mundo.
As ilhas e as avionetas
O Canal do Geba, entre Bissau e o arquipélago dos Bijagós, é caprichoso. Está cheio de bancos de areia, armadilhas para quem não conhece este mar. Terá sido uma rota mal traçada que provocou o acidente da lancha voadora que repousa no cais do porto de Bissau. Os pacotes de cocaína terão sido depois pescados por outros frequentadores.
Entre Bissau e os Bijagós não há transporte regular, ou melhor, ocasionalmente o "Expresso Bijagós" faz o trajecto. De resto, os guineenses deslocam-se em canoas sobrelotadas, de risco iminente.
A pobreza contrasta com a beleza paradisíaca das ilhas. Oitenta ilhas, umas habitadas, outras selvagens, todas luxuriantemente verdes no meio de um mar quente em tons de esmeralda.
À chegada à ilha de Bubaque, uma lancha da Marinha atracada no porto sinaliza o recente despertar da vigilância. A ilha está povoada de histórias de lanchas rápidas e avionetas num tráfico descontraído. Nada que seja testemunhado pelo governador-geral de Bubaque, Carlos Tenente. "Concretamente não vi nada." A não ser quando vieram militares de Bissau desmantelar uma casa cheia de bidões de combustível para avião, junto a uma pista de terra batida no meio de um pasto para vacas. "O chefe de Estado-Maior chamou-me, fui lá e realmente vi, e eles diziam que o combustível era para avioneta ou para longo alcance", esclarece Tenente.
Quem vive na ilha, vê. "A vida aqui é difícil, passam-se coisas que nós não queremos para o país", desabafa Ronaldo Correia.
O medo e a timidez retraem as palavras de testemunhas que confirmam voos nocturnos. "Aqui eu posso dizer que é o caminho da droga, porque ela não fica cá. Quando chega o avião, é descarregada, levada para a praia e não sei que destino leva", diz um habitante. Outro acrescenta: "Sabes que a droga é uma coisa preciosa, aquela gente toda... eu acho que vão receber bem..." Droga é dinheiro para quem voa, para quem apoia em terra, para quem se faz ao mar.
A vigilância quase nula do arquipélago deixa todo o mar aberto a quem tenha meios para um negócio altamente rentável. "Agora pode-se comprar por cerca de 500 mil euros um avião russo no mercado negro latino-americano, que pode aterrar na Guiné-Bissau. Nalguns, o depósito de gasolina transporta cocaína. O método é sofisticado e o esquema pode triplicar, quintuplicar nos próximos anos", adianta Amado de Andrés. Este especialista em crime económico alerta para o posicionamento estratégico da Guiné-Bissau, vulnerável "às máfias do tráfico de cocaína, mas também do branqueamento de capitais, da imigração clandestina e do financiamento do terrorismo. Redes que podem converter o país numa plataforma muito perigosa com efeito dominó expansivo para a região mas também para a UE".
Em Bubaque, onde existem 20 carros para mais de cinco mil habitantes, a palavra cocaína é estranha. Mas quem aqui vive fica à coca das coisas estranhas que se podem entranhar.