Em matéria de violência e perversidade, a realidade revela-se mais cruel e inventiva que a ficção. Basta olhar para os tempos que correm e verificar o que se passa na Ucrânia e em Gaza, sem esquecer a Birmânia, o Sudão ou o Congo. Os promotores do mal não são bruxas, vampiros ou dragões mas sim ditadores, senhores da guerra, traficantes de droga ou fanáticos de todos os matizes. É por isso que num festival como o Fantasporto onde, historicamente falando, o cinema fantástico sempre teve um lugar importante, um filme como “Goliath”, rodado no Cazaquistão, está longe de destoar.
A fita, realizada por Adilkhan Yerzhanov, foi selecionada para o festival de Veneza. Mostra-nos uma região remota do Cazaquistão dominada por um gangue que parasita a atividade económica, vivendo da extorsão e beneficiando da cumplicidade de uma polícia ineficaz e corrupta. Poshaev, o hiper violento chefe do bando, fará a certa altura um discurso que não ficaria mal a Putin: “A diferença entre o nosso sistema e o da Europa é que eles têm o fisco, a polícia e a política separados, e nós temos tudo junto…”
Onde o estado e os cidadãos falham, vai ser um protagonista improvável a levar os criminosos à perdição: um ex-soldado, mutilado de guerra, que irá tecendo uma teia que fará os bandidos virarem-se uns contra os outros. Após o massacre final, o ecrã enche-se com uma citação de Maquiavel: “Ensinei os príncipes a tornarem-se tiranos e os súbditos a livrarem-se deles…”
Ir ao futuro para mudar o passado
Se na sessão de ontem vos falei de um filme alemão e da possibilidade de mundos paralelos, hoje falo-vos de um filme japonês e da interação do passado e do futuro. “From the End of the World” (em português, Do Fim do Mundo) é a história de uma adolescente que tem o poder de, nos seus sonhos (melhor seria chamar-lhe pesadelos), ter vislumbres do passado. E de, com isso, poder modificar o futuro, evitando um anunciado fim do mundo cujas raízes mergulham na época medieval e nas sangrentas guerras entre samurais.
Uma fita realizada por Kazuaki Kiriya que apenas peca por alguma falta de concisão mas onde não falta um olhar crítico sobre o Japão de hoje: a nostalgia imperial, o poder perverso das redes sociais, o medo do grande terramoto ou explosão nuclear. E cuja moral se poderia resumir assim: para corrigir o presente, o melhor é ir ao futuro e mudar o passado…
Um tema que, de alguma forma, não anda longe de outro filme passado terça-feira nesta 44ª edição do Fantasporto. Trata-se da produção italiana “The Complex Forms”, realizada por Fabio d’Orta. Uma situação clássica no cinema fantástico: um grupo de pessoas (curiosamente só homens) que assinam uma espécie de pacto com o diabo ou, melhor dizendo com os seus intermediários, e se resignam a penar numa estranha mansão até à aniquilação ou à expiação dos seus pecados. Mas onde o tempo corre de outra forma: um dia vale por um ano no mundo exterior…
Finalmente, um filme de bruxas, diabos e adolescentes vindo da Argentina, apropriadamente chamado “The Witch Game" (com realização de Fabián Forte). Num país que elegeu Milei como presidente, dificilmente um bruxedo poderia funcionar como deve ser…