Angela acorda desgrenhada às 5h30 da manhã com um livro de Proust na mesinha de cabeceira que não terá tempo de ler tão cedo. Também ela procura o tempo perdido, madalenas é que nem vê-las. Aguardam-na 16 horas de trabalho duro como assistente de produção de 'conteúdos', como agora se diz, para um filme promocional pago por austríacos sobre a segurança no trabalho. Mal se lava, troca de cuecas, ala que se faz tarde, no plano seguinte já está na rua a entrar na carrinha. Nisto, lança Radu Jude um primeiro curto-circuito em que o 16mm a preto e branco da protagonista é interrompido pelo 35mm de cor deslavadas de outro filme rodado em 1981 na Roménia comunista, “Angela merge mai departe”, de Lucian Bratu (para os interessados, há uma cópia do mesmo no YouTube sem legendas).
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Radu Jude partiu a loiça toda em Locarno com uma sátira endiabrada aos tempos que correm
O único problema de “Do Not Expect Too Much of the End of the World” é que o festival mal começou e o Leopardo de Ouro, dir-se-ía, já 'está entregue'. O filme de Radu é uma tragicomédia brilhante sobre a escravidão do mundo do trabalho precário e das redes sociais na Roménia pós-socialista. Transborda de corrosão ao que há de mais absurdo na sociedade contemporânea. Se o mundo está para acabar, é porque a humanidade ensandeceu. Arrancou em força este Locarno 2023