Conseguir desarmadilhar o problema das moratórias vai ser um dos maiores desafios da política económica dos próximos tempos. Segundo dados do Banco de Portugal relativos ao mês de março, há qualquer coisa como 42 mil milhões de euros de empréstimos a empresas e famílias sob moratórias públicas ou privadas, o que representa cerca de 20% do PIB português. As moratórias a empréstimos à habitação abrangem mais de 250 mil famílias, as dos empréstimos a empresas mais de 53 mil PME. No setor do alojamento e restauração, estão sob moratória 58% do montante total dos empréstimos. Estas moratórias são o que tem permitido evitar os incumprimentos e as falências (e, no caso da habitação, a execução das hipotecas), mas quantos destes empréstimos irão mostrar-se insustentáveis quando as moratórias terminarem?
Em Portugal e por toda a Europa, tanto o crédito malparado como o número de insolvências têm vindo consistentemente a diminuir ao longo da crise da Covid-19, precisamente por causa das moratórias e outras medidas, como o alívio dos rácios de capital exigidos ao setor bancário ou a alteração temporária dos procedimentos legais em torno das insolvências. Por isso mesmo, existe também em toda a Europa o receio de que estas medidas acabem por adiar e concentrar no tempo aquilo que se receia que possa vir a ser um tsunami de incumprimentos e falências, para utilizar a expressão referida num relatório do European Systemic Risk Board (ESRB) publicado no mês passado.
O problema, portanto, não é exclusivamente português, mas assume proporções especialmente preocupantes em Portugal. Isso deve-se ao governo português ter apostado a maioria das suas fichas na contenção das manifestações da recessão (o desemprego, por via do layoff simplificado e similares, e as falências, através das moratórias), em detrimento da contenção da recessão propriamente dita. Face à recessão desencadeada pela Covid-19, a resposta orçamental contracíclica portuguesa foi das mais débeis da União Europeia, sendo conhecidos, por exemplo, os mais de seis mil milhões de euros de despesa autorizada pelo orçamento suplementar para 2020 que ficaram por utilizar. Ainda mais do que outros governos europeus, o governo português apostou muito em responder aos problemas de liquidez e pouco em atender aos problemas de solvabilidade; muito em conter os sintomas e pouco em conter os processos subjacentes.
Isto não foi inteiramente negativo (numa crise como estas, é muito importante conter o desemprego e as falências) nem foi necessariamente por má vontade (mas sobretudo devido ao elevado endividamento do Estado português e às perspetivas das regras orçamentais europeias voltarem a vigorar em breve). Mas assentou num cálculo de alto risco, que pressupõe que é possível congelar temporariamente a economia e em seguida relançar tudo como dantes, passando entre os pingos da chuva e evitando a dinâmica recessiva. Para isso, o governo está a contar fundamentalmente com a rápida mobilização do PRR, mas também aqui o cálculo é de alto risco: a dimensão do PRR parece ficar aquém do necessário para este efeito e a cada mês que passa vai-se alargando um pouco mais o horizonte temporal do seu desembolso.
O que pode então ser feito para desarmadilhar este problema? O objetivo das políticas públicas neste domínio não deve ser evitar a totalidade das falências para todo o sempre, pois isso implica um custo demasiado elevado a sustentar empresas que nalguns casos se tornaram estruturalmente e não apenas temporariamente inviáveis. O primeiro objetivo deve antes passar por garantir que as insolvências que
forem inevitáveis não desencadeiam processos recessivos de proporções macroeconómicas. Para isso, é essencial evitar a sua concentração no tempo. Neste momento, a perspetiva é que a maioria das moratórias acabe em setembro, de uma só vez. Ora, para além de ser necessário garantir que as moratórias só são removidas quando existirem perspetivas sólidas de retoma no conjunto da economia, é também fundamental introduzir mecanismos que permitam o espaçamento no tempo das situações de insolvência. Por exemplo, a reintrodução do pagamento dos empréstimos poderia ser feita gradualmente, aumentando em incrementos de 10% ao longo de dois anos, de modo que as empresas não se confrontem com a sua inviabilidade todas ao mesmo tempo.
O outro objetivo central deve ser a preservação do emprego. Para isso, o governo pode considerar a introdução de mecanismos de auxílio a pequenas empresas em dificuldades através da transformação da dívida dessas empresas em participações do Estado na empresa, mediante a assinatura de contratos com o Estado que comprometam a empresa com a preservação e qualidade do emprego. Este tipo de mecanismos, que são exatamente o tipo de coisa para que poderia servir o Banco de Fomento, permitiria transitar do apoio à liquidez para o apoio à solvabilidade e ao mesmo tempo limitar as repercussões negativas da crise sobre o emprego e os salários.
Por último, as moratórias sobre os empréstimos à habitação exigirão atenção e soluções especiais, pois neste caso estão em causa o direito à habitação e consequências sociais especialmente sensíveis para muitas famílias. Deverão por isso ser tratadas com particulares cautelas, incluindo o prolongamento dos mecanismos de alívio para as famílias que enfrentarem perdas significativas de rendimento ou situações de desemprego, de modo a evitar desencadear situações de grande vulnerabilidade.
Entre a impossibilidade de manter eternamente as moratórias e a perspetiva de um cataclismo súbito desencadeado pela sua remoção desorganizada, será necessário encontrar soluções equilibradas. O desfasamento do processo no tempo e a assunção de participações de capital pelo Estado nalgumas empresas como contrapartida de preservação do emprego podem ser parte dessas soluções.