&conomia à 5ª

Economistas, físicos e epidemiologistas

A hora que vivemos é de crise grave e este é, e continuará a sê-lo-á ainda mais nas semanas que temos pela frente, o tempo do imperativo do distanciamento social e o tempo da prioridade absoluta à resposta médica. Mesmo que esta crise venha a evoluir de forma relativamente mais favorável – e estou hoje mais otimista a esse respeito do que há uma semana, por motivos que explico em baixo -, esta epidemia vai infelizmente fazer ainda muito mais infetados e muito mais vítimas mortais por todo o mundo, e também em Portugal, do que os que fez até agora. O pior está mesmo pela frente por dois motivos simples: ainda estamos na fase de aceleração do numero de contágios; e os efeitos de quaisquer medidas tomadas só se tornam visíveis uma a duas semanas depois no que diz respeito ao número de casos e ainda um pouco mais tarde mais do que isso no que diz respeito aos casos graves e fatais.

Mas é também isso que apesar de tudo me deixa mais optimista. Apesar da leitura mais dramática e pessimista da realidade italiana poder sugerir um processo fora de qualquer controlo (ontem, 4ª feira, bateu-se novamente o recorde diário de número de novos casos e de óbitos em Itália), parece-me que uma leitura mais fria sugere que as medidas de distanciamento social estão a ter um efeito claro na contenção da epidemia. Quando um processo de crescimento quase-exponencial desacelera e passa gradualmente de côncavo a convexo, é de esperar que o número de novos casos continue a bater recordes diários durante algum tempo, mesmo que se encontre em desaceleração. O que é decisivo do ponto de vista da evolução da epidemia não são os novos casos diários em termos absolutos mas em termos relativos (a percentagem de crescimento) e essa, de uma foma geral, tem vindo a diminuir em Itália nos últimos dias. Isto é muito importante porque mostra que as medidas de distanciamento social são eficazes como resposta mesmo fora dos contextos particulares da China, Hong Kong, Macau, Coreia do Sul e Japão, onde a resposta foi adotada mais cedo e sabíamos já que resultara, mas não havia certezas sobre até que ponto dependia de fatores como a experiência da SARS em 2002 ou o contexto cultural.

Aparentemente, o distanciamento social resulta mesmo, em diferentes contextos, para enfrentar esta epidemia – e se for aplicado eficazmente permitirá limitar a sua progressão e a magnitude dos seus danos também entre nós. Sinto-me por isso aliviado e satisfeito com o facto de Portugal tê-lo introduzido de forma gradual mas relativamente precoce face ao que outros têm feito. O governo português tem a meu ver atuado de forma atenta, equilibrada e responsável nesta matéria (há claramente críticas a fazer às respostas em matéria social e económica, mas não irei tratar dessas neste texto). Numa altura em que estamos a poucos dias de começar a sofrer o embate maior desta crise, é seguramente para mim fonte de alívio e confiança ter António Costa e a sua equipa na liderança do país em vez de irresponsáveis negacionistas como Bolsonaro, Trump ou Boris Johnson. E numa altura critica em que o governo deve contar com o apoio de todos no que diz respeito à resposta à crise de saúde pública, é também de saudar a atitude colaborativa e responsável da generalidade dos partidos.

Referi-me em cima à evolução da epidemia enquanto processo exponencial ou quase-exponencial, e esta é uma discussão que nestes últimos dias tem ocupado muita gente: epidemiologistas (aqueles que realmente percebem do assunto), mas também físicos, economistas e outros, que não resistem a meter a colher (como eu próprio, e nem sempre acertadamente). Nos últimos dias, vários jornais, incluindo o Expresso, têm publicado exercícios de estimação da evolução da epidemia em Portugal enquanto função exponencial, que no início de uma epidemia constitui efectivamente uma boa aproximação: se toda a população for suscetível de contágio, cada infectado contagiar x novos casos em média e esse x for constante e maior que 1, o processo de crescimento é exponencial (ver Figura da esquerda, em baixo). Estes exercícios são interessantes e relevantes como alerta, sendo que, na minha opinião, os melhores são os que à qualidade técnica aliam a franqueza quanto às suas próprias limitações e fontes de incerteza.

Mas como facilmente se percebe, nenhuma epidemia segue eternamente um processo de crescimento exponencial: mesmo no pior cenário, sem qualquer tipo de resposta, atinge-se mais cedo ou mais tarde um ponto em que a redução do número de indivíduos suscetíveis de serem infetados leva à desaceleração do número de contágios. Por esgotamento gradual do número de suscetiveis, x torna-se menor que 1. E se a própria exposição ao vírus permitir desenvolver a imunidade de grupo tão falada nos últimos dias a propósito das opções britânicas, o número total de casos irá convergir para um máximo que poderá ser uma proporção maior ou menor da população total. Pedro Pita Barros tem por isso razão em não acreditar na curva exponencial: afinal de contas, toda a epidemia segue sempre uma curva logística e não exponencial, independentemente da primeira, na sua fase inicial, se assemelhar muito a uma exponencial (ver a Figura da direita, em cima).

Em todo o caso, o que nos deve importar realmente não é a discussão geral sobre processo exponencial versus processo logístico, que numa população finita está resolvida por definição. A questão é muito mais concreta e passa por conhecer – e sobretudo antecipar – o ponto de inflexão em que a curva passa de convexa a côncava. Passa também por reduzir o valor para que converge o número total de infetados, casos graves e casos fatais. Seguramente, não queremos atingir o ponto de inflexão devido ao esgotamento gradual do número de indivíduos suscetíveis, mas porque conseguimos reduzir ativa e suficientemente a velocidade de contágio.

Ora, as respostas a estas questões fundamentais não podem ser encontradas nos dados dos dias anteriores, nem sequer nas propriedades do vírus. Aquilo de que dependem fundamentalmente é das respostas comportamentais das pessoas – quer as induzidas pelas medidas de saúde pública quer as tomadas voluntariamente por maior consciencialização ou receio do perigo. A maior ou menor redução da velocidade de contágio é o que vai provocar a mais lenta ou mais rápida passagem do ponto de inflexão na curva logística e permitir a convergência para um menor ou maior número total de casos. E essa maior ou menor redução da velocidade de contágio não está escrita nas estrelas, nas folhas de cálculo dos economistas ou no RNA do vírus – evolui de dia para dia e continua a depender crucialmente do comportamento de cada um de nós.

Por isso, leia e acompanhe estes exercicios de previsão da evolução da epidemia, mas desconfie deles sempre que sugiram inevitabilidades: sejam eles mais catastróficos (curva exponencial) ou relativamente mais otimistas (curva logística, especialmente se baseada num ajustamento em função do precedente asiático), essa ideia de inevitabilidade alimenta uma complacência que pode ter consequências perigosas. A evolução desta crise continua a estar em aberto, e nas mãos de todos nós.

Nota final: Como disse no inicio, esta é uma hora de grave crise em que na linha de frente, durante as próximas largas semanas, vai estar sobretudo o pessoal médico e de enfermagem. Vão trabalhar horas infindáveis, estar longe das famílias, passar inúmeros desconfortos, tomar decisões que ninguém deveria ter de tomar, correr riscos de saúde e de vida. Vão fazê-lo por todos nós. Muitos, estando já aposentados, prontificaram-se a regressar ao serviço. A todas e todos eles, exprimo desde já a minha profunda gratidão. Que não nos esqueçamos deles nem agora nem quando tivermos superado esta crise.