A Comissão Europeia publicou ontem as suas análises preliminares dos anteprojectos de Orçamento para 2020 dos estados da zona euro. Como habitualmente, contém uma série de puxões de orelha aos estados membros considerados indisciplinados do ponto de vista orçamental, incluindo Portugal, Itália, França e Espanha. Do lado dos bem-comportados, que como costume têm a Alemanha e a Holanda à cabeça, é vagamente referido que poderiam fazer mais para apoiar o investimento e o dinamismo na zona euro, mas a coisa fica-se por aí.
Na análise do anteprojecto de Orçamento do Estado português, a principal crítica da Comissão é dirigida ao risco de incumprimento em termos de saldo estrutural, variável especialmente obscura mas central para o regime de disciplina orçamental imposto pelas regras europeias. Apesar do saldo orçamental global estar cada vez mais próximo do equilíbrio (défice previsto de -0,1% em 2019 e 0,0% em 2020), a comissão alerta que o saldo estrutural é mais deficitário e com tendência de deterioração, de -0,3% em 2019 para -0,5% em 2020. E é isto que a Comissão considera uma inaceitável violação das regras.
Para que se perceba melhor o que está em causa, vale a pena explicar brevemente que o saldo estrutural corresponde ao saldo orçamental global (receitas menos despesas do Estado), ajustado ao efeito do ciclo económico e uma vez descontadas as medidas pontuais. A ideia é aferir a situação das finanças públicas em termos fundamentais, descontando em cada ano o efeito daquilo que é meramente pontual e o efeito do ciclo económico (uma vez que as fases de recessão deterioram as receitas e despesas e as fases de expansão melhoram ambas as coisas).
Para calcular este saldo estrutural, é por isso necessário estimar até que ponto a economia se encontra numa fase de expansão ou de recessão, e a forma de fazer isso é através do cálculo do chamado PIB potencial, que corresponde ao nível de produto que a economia produziria se estivesse a operar em pleno, de uma forma considerada sustentável. Acontece, e é aqui que a coisa começa a descambar, que esse pleno está longe de ser o máximo alcançável: em muitos casos, como aliás sucede atualmente com a economia portuguesa, esta metodologia considera que a economia pode encontrar-se acima do PIB potencial, ou por outras palavras, a crescer mais do que é sustentável. No caso português, a Comissão Europeia considera que o hiato do produto (diferença entre o PIB efectivo e o PIB potencial) é positivo desde 2017, como se vê na figura em baixo (dados da AMECO - Comissão Europeia).
E porque é que a Comissão Europeia pensa isto? Basicamente, porque considera que o nível de desemprego está já abaixo do seu nível ‘sustentável’, representado por outra variável ainda mais obscura e artificial conhecida por “desemprego natural” (também designada por NAIRU ou NAWRU, que no fundo corresponde ao nível de desemprego considerado compatível com a manutenção de níveis estáveis de inflação).
Na prática, porém, esta taxa de desemprego ‘natural’ não é mais do que uma média móvel, um ‘alisamento’, da taxa de desemprego efectivamente verificada, como se pode ver facilmente observando esta outra figura em baixo, em que estão representadas a taxa de desemprego real da economia portuguesa e a taxa de desemprego ‘natural’ estimada pela Comissão (dados da AMECO, novamente).
Tudo isto é obviamente absurdo: ninguém no seu perfeito juízo considerará que o nível ‘natural’ de desemprego da economia portuguesa passou de 13% para 7% em meia dúzia de anos, ou que os actuais 6% de desemprego em Portugal são insustentavelmente baixos. O conceito é frágil do ponto de vista teórico, parcial do ponto de vista ideológico e desastroso na prática.
E no entanto, é o que está na raiz de tudo isto. Recordemos: a Comissão considera que o nível de desemprego em Portugal está neste momento abaixo do ‘natural’; por causa disso, considera que o PIB português está acima do produto potencial; por causa disso, considera que o saldo estrutural é mais deficitário do que devia; por causa disso, avisa que Portugal está em risco de incumprimento; e é este raciocínio opaco, absurdo e bizantino que apoia a ingerência da Comissão nas opções orçamentais portuguesas e, no limite, a ameaça de aplicação de sanções de centenas de milhões de euros.
Seria difícil imaginar um conjunto de regras mais intrinsecamente recessivo e menos democrático. Uma receita para o desastre.