&conomia à 5ª

Credores e devedores

Na Conferência de Bretton Woods de 1944, em que foram criados o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional e estabelecidas as bases de funcionamento do sistema económico e financeiro internacional para as décadas seguintes, confrontaram-se duas visões opostas sobre a regulação dos desequilíbrios comerciais e financeiros internacionais. A proposta defendida pela delegação britânica, liderada por Keynes, considerava que uma vez que todo o défice externo corresponde a um superávite, o fardo do ajustamento em caso de desequilíbrio das contas externas deveria recair tanto sobre os países deficitários, que deveriam limitar a procura, como sobre os países superavitários, que deveriam expandi-la. Mas a visão que sairia vencedora foi a defendida pela delegação norte-americana, que defendia que apenas os países devedores devem ser obrigados a apertar o cinto, não devendo os países credores ser chamados a assumir a responsabilidade pela correção dos desequilíbrios.

Boa parte do sistema de Bretton Woods, em particular o regime de câmbios fixos, desmoronar-se-ia por iniciativa norte-americana em 1971, motivada entre outros fatores pela intenção dos EUA se libertarem dos constrangimentos à despesa no contexto da guerra do Vietname. Mas o princípio segundo o qual os desequilíbrios externos se corrigem através da imposição de contrações recessivas nos países deficitários, ao invés de expansões fiscais e orçamentais nos países superavitários, permaneceria em grande medida indisputado e viria a estar subjacente a numerosas intervenções de estabilização e ajustamento estrutural na América Latina, em África... e na periferia da zona euro.

Nos tempos mais recentes, a China e a Alemanha têm constituído dois dos principais pólos superavitários da economia mundial, isto é, duas grandes economias exportadoras geradoras de enormes superávites externos que, por essa via, se tornaram gigantescos credores mundiais. No caso da China, o desequilíbrio tem sido em grande medida bilateral: como contrapartida dos seus superávites comerciais face aos Estados Unidos, a China tem acumulado ativos financeiros que são direitos sobre a economia norte-americana, incluindo títulos de dívida pública dos EUA estimados em mais de um bilião (milhão de milhões) de dólares. Para a Alemanha, boa parte dos superávites e dos créditos têm correspondido a défices e dívida da periferia da zona euro, mas do auge da crise do euro em diante os desequilíbrios aprofundaram-se principalmente relativamente ao exterior da zona euro. Tendo a periferia da zona euro de alguma forma detido (ainda que não invertido) a sua tendência de endividamento, os superávites externos da Alemanha (e de mini-Alemanhas como a Holanda) expressam-se hoje em dia como superávites da zona euro como um todo face ao exterior.

Estes superávites são hoje os mais importantes – e potencialmente mais desequilibradores e nocivos – de toda a economia mundial. Segundo um relatório acabado de publicar pelo FMI sobre as dinâmicas dos desequilíbrios externos, a Alemanha é hoje, de longe, a mais superavitária das economias mundiais: 291 mil milhões de dólares de superávite externo em 2018, que por exemplo comparam com apenas 49 mil milhões de dólares de superávite da China. O que isto quer dizer é que, não tendo deixado de exportar, a China estimulou suficientemente o seu mercado interno para que a economia chinesa passasse igualmente a importar em quantidade suficiente para colmatar o desequilíbrio anteriormente existente face ao exterior. O mesmo não tem sucedido, nem parece estar em vias de suceder, no caso da Alemanha, que ao prosseguir inamovivelmente na senda da acumulação de superávites continua decidida a agravar o endividamento dos seus parceiros.

Para uma economia no fio da navalha como a portuguesa, a insustentabilidade de partilhar uma união económica e monetária com um mastodonte neo-mercantilista como a Alemanha só tem sido relativamente disfarçada pela política monetária hiper-acomodatícia que o BCE implementou nos últimos anos. Contudo, esta última também contribui por sua vez para o desequilíbrio credor da zona euro face ao resto do mundo, dando origem a tensões comerciais e económicas que logo se tornam também políticas. Bem melhor seria para todos que a zona euro se reequilibrasse tanto internamente como face ao exterior, mas para isso seria necessária uma de duas coisas: mais razoabilidade por parte das autoridades alemãs ou mecanismos mais eficazes de regulação e coordenação internacional. Nenhuma das duas coisas parece estar ao alcance.