Filosofia

Tradução de "Introdução à Filosofia Matemática": Bertrand Russell em Português

Na sequência da publicação, pela Fundação Calouste Gulbenkian, da tradução portuguesa da Introdução à Filosofia Matemática de Bertrand Russell, Adriana Graça, do Departamento de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, autora da tradução, e Fernando Ferreira, do Departamento de Matemática da Faculdade de Ciências da mesma universidade, respondem a algumas questões sobre a obra.

Como surgiu este livro no percurso de Bertrand Russell? Adriana Graça: Este livro foi acabado em 1918, durante um período de seis meses que Bertrand Russell passou na prisão, em virtude da publicação de um seu artigo pacifista e crítico em relação ao papel do governo inglês e do exército americano na 1ª Grande Guerra. O livro foi publicado no mesmo ano. Russell dá-nos um resumo do programa logicista que tinha tentado levar a cabo uns anos antes e que ficou condensado nos três volumes monumentais, escritos em conjunto com Alfred North Whitehead e publicados entre 1910 e 1913, denominados no seu conjunto Principia Mathematica. Para lá disso, incorpora este programa na sua visão mais geral de diversas questões de índole filosófica, visão que nasce de quais as soluções para inúmeros outros problemas filosóficos, aparentemente desligados do programa logicista. Isso faz do presente livro uma obra única em originalidade. O que é a "filosofia matemática" a que se refere o título? Como se relaciona ela com a filosofia da lógica ou a lógica filosófica? [AG] Efectivamente, há que distinguir os três universos de questões que, estando relacionados, são diferentes entre si: falo de "Filosofia Matemática", "Filosofia da Lógica" e de "Lógica Filosófica". A Filosofia Matemática é a área da Filosofia que se interessa pelos objectos com os quais a Matemática lida, como por exemplo, os números, perguntando tipicamente o que eles são, bem como pela natureza dos diversos procedimentos típicos da Matemática: o que é uma demonstração, o que são as frases da Álgebra e por ai em diante. O logicismo, de que falámos acima, é uma teoria acerca do que são as proposições da Aritmética; mas não a única sobre este assunto. O intuicionismo e o formalismo são duas outras respostas diferentes à mesma questão. A Filosofia da Lógica é uma área diferente da Filosofia; é aquela que se debruça sobre a natureza e a justificação dos diferentes sistemas de Lógica, bem como dos diferentes conceitos usados na Lógica: o que é a implicação, a negação. O que é a consequência lógica e qual a validade do princípio do terceiro excluído, são temas típicos desta disciplina. Finalmente, a Lógica Filosófica, ao contrário das duas disciplinas anteriores, é uma área da Lógica (e não da Filosofia). Como resulta óbvio, as três disciplinas estão fortemente conectadas. Que ideias fundamentais defende Russell nesta obra? [AG] Como disse acima, a defesa e apresentação do programa logicista é o objectivo central do livro. A ideia é a de que as proposições da Aritmética são todas deriváveis a partir de proposições da Lógica, o que é o mesmo que dizer que a Aritmética é a Lógica disfarçada. Só em 1931, com o Teorema da Incompletude da Aritmética, de Gödel, se mostrou que o projecto está em princípio votado ao fracasso, dado que há pelo menos uma frase escrita no sistema que é verdadeira e indemonstrável no sistema. Ao tempo em que Russell escreveu esta obra, o resultado que acabei de mencionar não estava disponível, e Russell tenta apresentar uma solução para os problemas que o projecto logicista impõe. Assim, o conceito de função proposicional de ordem n, o Axioma do Infinito e o Axioma da Redutibilidade (para só mencionar alguns) são apresentados e discutidos. De um ponto de vista mais geral, Russell propõe um modelo de análise dado pela sua Teoria das Descrições Definidas, o qual, desejavelmente, pode ser aplicado a outros conceitos e problemas. Há quem considere o livro importante, mas datado. Qual pensa ser o relevo filosófico da obra, e em particular, da teoria das descrições definidas aí exposta? [AG] A Teoria das Descrições Definidas é por muitos considerada, mesmo por quem a não subscreve, um modelo de análise filosófica. Russell faz nesta obra uma apresentação amadurecida da teoria, resumindo os resultados por ele obtidos em 1905, em "On Denoting", onde pela primeira vez a teoria, a motivação para ela, e as suas implicações, são apresentadas. Esta teoria foi seriamente questionada muitos anos depois, por Peter Strawson e Keith Donnellan, mas o seu alcance continua, e muitos ainda a subscrevem.

Basicamente, o que Russell quer estabelecer é que, ao contrário do que parece e do que é sugerido pela gramática de superfície, as descrições definidas não são termos singulares (como o são nomes próprios genuínos). Isto significa que estes termos não têm sentido isoladamente, mas unicamente no contexto de uma frase declarativa. Isto quer dizer, por seu turno, que a entidade descrita por meio de uma descrição definida, mesmo quando existe e é única, não é um constituinte de qualquer proposição expressa por qualquer frase que inclua essa descrição. Russell parafraseia a frase da linguagem corrente que contém a descrição definida numa linguagem logicamente perfeita, a qual alegadamente lança luz sobre a verdadeira sintaxe (escondida) deste tipo de frases, mostrando que os termos descritivos são assim elimináveis. A frase "O autor de Waverley é Scott" (i.e., Sir Walter Scott), para usar um dos exemplos de Russell, diz algo significativamente diferente da frase "Scott é Scott", mesmo apesar do facto de Scott ser efectivamente o autor de Waverley. E, se isto assim é, fica a dever-se ao facto de a descrição definida não contribuir com a entidade descrita, mas sim com as propriedades expressas pelos predicados linguísticos que ocorrem na expressão verbal da descrição, para a determinação daquilo que é dito. Assim sendo, a frase inicial afirma que Scott é o único objecto que satisfaz a descrição definida em causa. Mas, ao contrário do nome "Scott", a descrição "o autor de Waverley" não contribui com Scott para aquilo que é expresso por meio de uma elocução da frase, ou pela frase ela própria.

Este resultado tem importância imediata na solução de outros problemas que Russell tem em mãos, dado que fornece um método de eliminação de entidades, ou melhor, de pseudo-entidades, indesejáveis (as classes vão ser abordadas por Russell a esta luz, por exemplo). Tem também importância para toda a Filosofia da Linguagem subsequente, sendo um exemplo de solução engenhosa e bem-sucedida de um conjunto de problemas de difícil solução.

Quais são as ideias fundamentais que Russell defende nesta obra?

Fernando Ferreira: O livro de Russell termina assim: "Se algum estudioso se sentir motivado para vir a estudar lógica matemática seriamente após a leitura deste pequeno livro, este terá cumprido o objectivo principal para o qual foi escrito". Li pela primeira vez "Introdução à Filosofia Matemática" de Bertrand Russell quando tinha 16 ou 17 anos numa tradução brasileira das edições Zahar. Se hoje trabalho em lógica matemática, isso deve-se em muito às leituras de Russell que fiz em adolescente e, em particular, à sua "Introdução à Filosofia Matemática". O livro causa imediatamente uma impressão forte numa mente jovem. Logo no segundo capítulo, pergunta-se (estranhamente) o que é um número e dá-se uma resposta pasmosa. O número dois (p. ex.) é a classe de todas as classes com exactamente dois elementos. A resposta impressiona pela surpresa e naturalidade e, passe a primeira impressão, não é circular. A tese fundamental do livro é a de que a matemática e a lógica são a mesma disciplina (tese do logicismo). Com uma maestria e graça dificilmente superáveis, Russell (que escrevia muito bem, tendo sido galardoado com o prémio Nobel da literatura em 1950) mostra até ao capítulo XII como é que as noções fundamentais da matemática, desde os sistemas numéricos dos números naturais, racionais, reais e complexos, até às noções mais abstractas da teoria dos conjuntos (ordinais e cardinais transfinitos), se podem desenvolver numa parca linguagem que apenas menciona classes e relações.

A partir do capítulo XIII surge a parte crítica do livro. Afinal os assuntos não são assim tão cristalinos. A noção de classe não pode ser usada de modo irrestrito, pois engendra paradoxos. Considere-se a classe constituída exactamente pelas classes que não são membros de si próprias. Esta classe é membro de si própria se, e somente se, não é membro de si própria. Trata-se do célebre paradoxo de Russell de 1902, que deitou por terra o trabalho do pioneiro do logicismo, o matemático alemão Gottlob Frege (1848-1925). A este último autor devem-se as ideias principais do programa logicista, nomeadamente a definição de número que mencionámos acima. Russell dedica-se intensamente na próxima década a tentar articular uma posição logicista defensável. Não cabe nesta pequena resposta explicar as ideias de Russell (os capítulos XIII a XVIII do livro são uma introdução soberba a estes assuntos). Bastará dizer que Russell defende uma doutrina de tipos lógicos segundo a qual, p. ex., um dado elemento não faz parte do mesmo domínio de significância de uma classe a que esse elemento pertença.

O desenvolvimento da teoria dos tipos lógicos (assim como o pioneiro trabalho de Frege) ilustra uma nova forma de fazer filosofia: se se defende a tese filosófica de que a matemática e a lógica são a mesma disciplina, deve pôr-se mãos à obra e mostrar que se pode desenvolver a matemática a partir de princípios lógicos. Com o seu co-autor A. N. Whitehead, Russell publica entre 1910 e 1913 os três influentes tomos do Principia Mathematica, onde se trabalha com detalhe a redução da matemática à lógica. O desenvolvimento do projecto logicista é um assunto fascinante e irá levar à descoberta de subtis problemas na tese logicista. Este facto também ilustra outro ponto interessante: os problemas tornam-se apenas patentes quando se embarca num desenvolvimento rigoroso do projecto. É esta especial combinação entre reflexão filosófica e desenvolvimento técnico rigoroso que torna tão fascinante a filosofia da matemática.

Alguns matemáticos consideram o livro importante para a sua época, mas datado. Qual pensa ser o relevo da obra para a filosofia e a matemática actuais?

[FF] Talvez não seja devidamente apreciado entre o público culto (nem mesmo entre muitos matemáticos e filósofos) que a matemática sofreu uma revolução de monta na passagem do século XIX para o século XX. Esta revolução só é comparável ao desenvolvimento do método axiomático na Grécia Antiga e ao aparecimento do cálculo infinitesimal no século XVII. A matemática de hoje, ao contrário da matemática de meados do século XIX, tem uma linguagem comum (a linguagem da teoria dos conjuntos) onde tanto se desenvolve a Álgebra como a Geometria ou a Aritmética, e através da qual se torna escorreito usar métodos de natureza infinitária que, ou eram inexistentes, ou eram muito polémicos no século XIX. A função unificadora da teoria dos conjuntos é um dos grandes legados desta terceira revolução. O outro grande legado, desta feita à informática, é o legado dos desenvolvimentos formais. O logicismo desempenhou um papel central em ambos estes legados, perenes à cultura humana. Devido às complicações e à carga filosófica do programa logicista, hoje os matemáticos preferem ao logicismo o método axiomático da teoria dos conjuntos (teoria de conjuntos de Zermelo-Fraenkel). Outra razão que contribuiu (entre os lógicos) para esta preferência foi a emergência da lógica de primeira-ordem nos anos vinte do século passado. Esta lógica tem uma axiomática completa e com ela atinge-se o rigor formal absoluto (o sistema de Russell é descuidado em vários aspectos sintácticos; se bem que estes pudessem ser consertados, o sistema é de uma complexidade desmesurada). Do ponto de vista filosófico, o logicismo é um marco na Filosofia da Matemática, e todo o estudioso destes assuntos deve tentar compreender aquilo que o logicismo propõe e quais são as suas limitações.

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