Flagrante deleite

Vítimas e heróis dos fotógrafos

Num debate na semana passada a propósito do lançamento da revista Imag, em que estavam Cândida Pinto, Rui Ochôa, Mafalda Lopes da Costa e Mário Soares, uma das questões levantadas foi a de saber até que ponto um fotografado pode ser ou não vítima de uma fotografia.

Por detrás dos convidados estava a fotografia de Mário Soares a ser espancado em 1987 na Marinha Grande e que, depois de ser publicada no Expresso, teve uma influência considerável na vitória do candidato à Presidência. Então, Soares ia com uma expectativa de dez por cento de votos do eleitorado e o incidente acabou por criar uma dinâmica de vitória, só possível pelas imagens captadas pela RTP e pelas fotografias do único fotógrafo presente.

Nem sempre uma imagem pode levar à glória o protagonista. Há fotografias que se tornaram ícones de uma causa, de uma tragédia, de uma luta, e que transformaram a vida de quem aparece num inferno. E por vezes o fotógrafo apanha por tabela. E se muitas fotografias permitiram que a vida do retratado mudasse para sempre e em glória, caso da vítima Mário Soares às mãos dos desvairados comunistas, noutros casos os fotografados passaram a andar com a fotografia às costas para todo o sempre.

A fotografia do vietcong a ser morto a tiro de pistola pelo chefe da Polícia americana em Saigão, feita por Eddie Adams da AP, Prémio Pullitzer, nunca mais deixou descansado o fotógrafo que acabou por sentir um fardo toda a vida: ele achava que tinha acabado por destruir a vida do oficial. Acabou amigo dele.

A fotografia de Eugene Smith feita em Minamata a uma mãe com o filho deformado pela contaminação de mercúrio acabou por ser interdita, por vontade do fotógrafo mas com o pedido da mãe, por estar a infernizar ainda mais a vida daquela pobre gente.

Essa sensibilidade para avaliarmos dos efeitos secundários das nossas imagens na vida dos que retratamos é fundamental. É uma questão ética que só a nossas consciência pode regular e nunca uma entidade burocrática. Mas deverá ser uma das preocupações constantes, um dos itens da check list que usamos diariamente no terreno da reportagem.

Curiosamente, uma das situações em que as pessoas geralmente não se querem fotografar é quando elas sentem que a sua integridade pode ser posta em causa. Há dias numa reportagem sobre compra de ouro português num hotel do Estoril, os vendedores que ali estavam com as jóias de uma vida, símbolos do orgulho familiar, olharam-me amedrontados quando me viram passar de máquina fotográfica.

Claro que ali nem se podia pôr a questão de fotografar. Era um lugar que exigia recato, respeito e alguma intimidade, embora se tratasse de um sítio público. Mesmo de costas, bastava um daqueles clientes reconhecer-se para já se tratar de uma fotografia que violava algo de confidente.

Noutras ocasiões em que a publicação de uma imagem pode até ser de serviço público, mesmo que quem é fotografado se sinta denunciado, aí não deverá haver hesitações em fotografar.

Vista como um espelho de nós ou no contra-campo como uma panorâmica sobre o Mundo, a fotografia tem um alcance social e pessoal que por vezes nós jornalistas não conseguimos sentir no instante, no calor da reportagem.



Luiz Carvalho, fotojornalista do Expresso