Não vinha a Portugal há longos nove anos, os mesmos em que um recém-quarentão se transforma em quase cinquentão. Aos 49 anos, Robert Peter Williams volta com uma aura (autodepreciativa, entenda-se) de veterano, de “homem velho” que já viu muito. É uma jogada de mestre: ao celebrar-se a si mesmo, com o bom humor que Stoke-on-Trent (e, possivelmente, o pub que os pais geriam) lhe deu, Williams consegue transformar uma pretensamente solene digressão de 25º aniversário de carreira a solo numa espécie de tributo a Robbie Williams, o grande, o mais novo dos Take That, o que aos 23 anos conheceu o seu maior êxito (‘Angels’, a canção que o público que esgotou a Altice Arena entoa à saída), aquele que se meteu nos maiores sarilhos (“sexo, drogas, escândalo!”, graceja, a dada altura) e viveu para contar a história. Não é um filme, é um concerto.
E que bem que lhe correu. Principiando 16 minutos depois da hora marcada – um astro de outros tempos faz-se esperar –, o espetáculo começa por apresentar Williams em versão ‘hooligan amigável’, entre a imaturidade treinada de um Liam Gallagher e o ‘bravado’ paradoxalmente sensível de Morrissey, tudo metido numa trituradora em Las Vegas. Autodenominando-se Robbie ‘fu**ing’ Williams, atira-se a ‘Let Me Entertain You’ com a adrenalina no máximo, abrindo um ‘show’ cenicamente cuidado, com muita gente em palco (8 músicos, coro feminino e bailarinas) e projeções que inicialmente parecem excessivas, mas que não se limitam a ampliar o que se vê em palco; dialogam verdadeiramente com ele.
Numa primeira ida à plateia, depois de percorrida o ‘catwalk’ (não há segundos palcos, plataformas ou outros motivos de ginástica), queixa-se de ter sido beliscado num mamilo, revelando que no concerto de Hamburgo, na Alemanha, o atrevimento localizou-se um bocadinho mais a sul. Foi depois dos ‘na na ra na na’ do clássico de rhythm and blues ‘Land of 1000 Dances’ e de ‘Moonsoon’, uma power ballad de 2002 que causou relâmpagos, numa altura em que se percebe que Williams também está aqui para conversar, neste que é o derradeiro concerto da digressão.
Noutros tempos, chamar-lhe-íamos espetáculo de variedades: Williams experimenta umas palavrinhas em português, chega a perguntar como é que se diz ‘wanker’ – por abundância de sílabas, certamente, a tradução fica por verbalizar; na muito bem recebida ‘Strong’ apensa ao verso “ I’m still young” o comentário “I’m really fu**ing old now” numa bem humorada anotação em tempo real; mete-se com duas fãs que assistem ao concerto nos piores lugares da sala, chamando-as para junto de si; resume o seu catálogo a “dois tipos de canções, número 1 ‘sou espantoso’, número 2 ‘estou sozinho e ninguém me quer salvar’ antes de interpretar uma do segundo grupo, ‘Come Undone’, aquela em que Robbie Williams faz de Bryan Adams.
O humor intensifica-se. A Altice Arena parece ficar mais pequena, com o artista em plena sintonia com a plateia, não sendo apenas um pontinho lá ao fundo para quem tem o azar de estar mais longe. Espirituosamente, começa assim a descrição de uma viagem no tempo: “1990, o Muro de Berlim cai, Nelson Mandela é libertado, Luís Figo faz o seu primeiro jogo europeu e cinco rapazes de Manchester mudam a paisagem musical para sempre. E qual é o nome deles, perguntam vocês? N’Sync.” Gargalhada geral. Robbie fala, evidentemente, dos Take That, boy band para a qual entrou com apenas 16 anos e onde ficaria até 1995. Nos ecrãs vemos o videoclip não censurado do primeiro single do quinteto, ‘Do What You Like’, com Williams novamente em modo de ‘comentário áudio’ (como nos extras de um DVD), fazendo observações como “este sou eu” e “estou sou eu outra vez” de cada vez que surge em grande plano, e acabando a fazer ‘pausa’ noutro plano ainda maior: o do seu rabo. “Este era o meu bumbum em 1990”, remata, para delírio generalizado. Um rabo desnudo ilustra um ecrã gigante da Altice Arena durante quase um minuto.
A história continua, agora com memórias de um festival de Glastonbury, ao qual Williams acorreu “com um bolso cheio de coca”, precedendo uma versão de ‘Don’t Look Back in Anger’, dos Oasis, memória de 1995, o ano em que saiu dos Take That (o relato é minucioso), com muitas indiretas (e diretas) reservadas para os antigos companheiros. Do seu regresso episódico aos Take That sobra aquele que terá sido talvez o momento mais incaracterístico da noite, ‘The Flood’, canção de 2010 a que o tempo não fez bem.
Aproximando-nos no fim, a galhofa dá lugar à terapia. Em ‘Love My Life’, Williams declara que o homem que vemos hoje em Lisboa é “o mais feliz” que alguma vez conseguiu ser. Partilha uma daquelas ‘convicções’ que a vida, airosamente, soube contrariar: “eu sempre disse que não me ia casar e não ia ter filhos. Nunca. Bem, estou casado há 17 anos e tenho quatro filhos.” Chega mesmo a dizer o nome e a idade de todos eles. Voam confetti. Progressivamente, abre o coração – e isso é simultaneamente tocante e ‘material’ do espetáculo, sem que a ‘operação’ pareça estranha. “Há 23 anos deixei de beber, era parar ou morrer, decidi viver”, confessa na introdução de ‘Eternity’, dedicada a uma amiga que o ajudou na altura certa: Geri Halliwell, das Spice Girls. O timing de storytelling é perfeito, aliviando cirurgicamente o ambiente: “vejam este vídeo”, comenta quando surge no ecrã uma secção de cordas ‘virtual’, “custou-me muito dinheiro”.
Após ‘Candy’ e ‘Feel’, o final é empertigado, com o regresso dos metais em ‘Kids’ e ‘Rock DJ’, em vésperas do encore. Não se fazendo agora esperar muito, Williams volta com um roupão de pugilista tapando o tronco nu. Junto às grades, dialoga com Filipa, uma fã de Leiria que não contém a excitação. “Não desmaies, não vai ficar bonito na internet. Tens 24 anos? Existe um gajo chamado Harry Styles, sabias?” Em ‘She’s the One’, Filipa é aquela, “mas num jeito fraternal”.
Sabemos que vem aí ‘Angels’ – não há como faltar –, mas primeiro Robbie Williams quer dizer-nos coisas sérias e chega inclusive a abreviar os aplausos. Com o foco sobre si e o público em silêncio, recorda a insegurança da juventude, os dias em que se sentiu “gordo, feio, sem graça” e os “demónios” que enfrentou. “Os dias que se transformaram em meses, os meses que se transformaram em anos, os dez anos que se transformaram em vinte. Vinte anos de depressão.” As drogas que experimentou, “a cocaína, o ecstasy, a heroína – quem é que havia de dizer que o Robbie ‘fu**ing’ Williams dava na heroína? –, o álcool”. 2006, o ano em que conheceu a mulher, a atriz Ayda Field, e em que, por fim, começou a gostar de si “através dos olhos dela”. E depois cantou, mas também deixou quase 20 mil pessoas a cantar por ele, terminando – já depois das vénias de todo o grupo (e que prestou a todo o grupo) – com breves passagens a cappella por ‘Let Me Entertain You’, ‘Strong’, ‘Come Undone’, ‘Feel’ e, claro, ‘Angels’. Sai de cena dissimuladamente, fitando pela última vez a plateia. Robbie Williams já não canta apenas quando está a ganhar; essa é, porventura, a sua maior vitória.