101 canções que marcaram Portugal é uma rubrica que visa homenagear as cantigas, os compositores e os intérpretes que marcaram a história da música portuguesa em Portugal. Sem ordem cronológica rígida, são um retrato pessoal (com foco na petite histoire) do autor. Mais do que uma contextualização e de um inventário de factos conhecidos, é sobretudo uma associação de estórias e de muitos episódios não registados. São histórias com estórias para além da música. Às vezes o lado errado das canções. Sobretudo o lado errado das canções.
‘Menina Estás à Janela’, Vitorino (1975)
No sul, a luz não se acanha. No sul, há planícies e savana. A vegetação escasseia. A água, a sua escassez, é tópico de conversa. A sul, procura-se sombra; como o sol teima em reger, é comum, num sul tão vasto, o contacto ser mais estreito – em busca de sombra. A sombra agregando os homens. O sul é quimérico, apelativo, sensual. Feito de vastidão e horizontes largos. Foi neste sul que nasceu, cresceu e se fez Vitorino Salomé. No Redondo. Num lugar de partilha pelo pouco que há. Partilha de afetos, abraços, narrativas do passado, sons presentes e utopias.
Vitorino é filho de um Alentejo alvo da vigia da ditadura. De um Alentejo feito de resistência, de protesto. De um Alentejo, ainda assim, composto de poesia e de lamento. De folia e de medo. 1961 foi o termo da aura sebastianista de Salazar. 1961 marcou o início da guerra colonial e Angola chamou filhos da metrópole para que se continuasse a alimentar o sonho ultramarino (Quantas mães choraram, Quantos filhos em vão rezaram, Quantas noivas ficaram por casar, Para que fosses nosso). Mas, para muitos jovens, o espectro da guerra colonial assumiu-se, por convicção ou por revolta, como um mote para embalar a trouxa e zarpar para a Europa livre. A clandestinidade, sobretudo para uma França esclarecida, fê-los conviver com ideais sempre válidos da Revolução Francesa e sobretudo com opositores com quem partilhavam os mesmos ideais. Vitorino não precisou de ter tido a ‘sorte’ de José Mário Branco, Luís Cília ou Sérgio Godinho. Mas que estava preparado, estava. Um acaso do destino fê-lo ficar em Portugal, fazendo a recruta no Algarve – onde conheceu José Afonso, que lá ensinava e ensaiava canções em que o povo, numa toada neorrealista, era protagonista das suas histórias (Tu trabalhas todo o ano, Na lota deixam-te nudo, Chupam-te até ao tutano, Levam-te o couro cabeludo). Passaram, a partir de então, a adotar-se. Até ao fim compagnons de route e de vida – com Adriano Correia de Oliveira, José Jorge Letria ou Fausto.
Ainda que sem a ameaça de combater em África, foi para Paris. Para ser pintor. Para se libertar. Para se sentir livre. Para viver uma existência errante. Para sorver um novo hemisfério cultural. Longe do Alentejo. Longe de Lisboa. Longe da Faculdade de Belas Artes. Longe das tardes à porta da Leitaria Garrett à espera de ver passar embevecido Vera Lagoa ou Natália Correia. Nas ruas de Paris cantava as suas referências – inclusive Zeca Afonso. Certo dia, cantou ‘Pombas Brancas’ (Pombas brancas, Que voam altas, Riscando as sombras, Das nuvens largas, Lá vão as pombas que não voltam) e um casal parisiense que passava, apaixonado, sem perceber uma palavra que fosse da canção de Zeca, ficou tão impressionado com a emoção que Vitorino depôs na canção que no fim, quando este lhes estendeu a boina, a rapariga tirou o seu anel de diamantes do dedo e ofereceu-lho. Quem se cruzava muitas vezes com Vitorino em Paris era Jorge Palma, apesar de nunca se terem encontrado: Palma passava a alta velocidade abaixo de Vitorino, dentro de uma carruagem de metro. Vitorino era um homem de paisagens vastas; exercia o mesmo ofício mas à superfície.
Depois da revolução, todos os músicos que se tinham envolvido na resistência se apressaram a gravar discos – na sua maioria estereotipados ou pastiches de Zé Mários, Godinhos ou Zecas. Muitos tiveram de palmilhar anos para encontrar o seu trilho fora do padrão que eram ‘Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades’, ‘Liberdade’ ou ‘Grândola, Vila Morena’. Vitorino Salomé soube, logo em 1975, que teria um timbre pessoal. Lançou um álbum com o título de uma moda alentejana, “Semear Salsa ao Reguinho”, e começou aí a sua matriz. A matriz em que fundeou o seu percurso: o Cante Alentejano, que cantava desde criança. Desse álbum, emergiu o seu hino, ‘Meninas Estás à Janela’. É uma canção doce, melódica, cândida. Uma canção de amor. Uma grande canção. Das que povoam Portugal, apesar de ser uma canção com influências no folclore tradicional do Alentejo. Fugia dos clichés que se esperavam de Vitorino Salomé – que empunhava o cravo vermelho em cima do palco ao lado de outros façanhudos, de bigodes fartos e olhar determinado. ‘‘Menina Estás à Janela’ não é uma canção de protesto; muito menos uma melodia açucarada interpretada por um cantor de fato completo, lenço na lapela e corte de cabelo aprumado. É uma canção romântica na voz de um revolucionário com boina, bigode, cabelo longo e botas de cano alto – descondizente com a candura e melodia perfeita de ‘Menina Estás à Janela’. Mas foi essa estranheza que o fez Vitorino. Pouco quis cantar o que os outros já cantavam.
Quis viajar por palavras e por terras. Quis recuperar a música tradicional da sua região e fundi-la com outros idiomas do sul – sempre do sul. Quis moldar esses idiomas à sua voz e aos seus padrões criativos – apontando a sua bússola ao Caribe, a África ou à Argentina. Traçou a sua identidade na identidade de Carlos Gardel, de Astor Piazzola, da música mais arraigada de Cuba, de Cabo Verde. Nos amigos que fez e que ouviu. Mas sobretudo na fusão das palavras com a melodia. Vitorino Salomé é um autor afetivo. Mais do que um cantor, é uma personagem agregadora de linguagens.
António Lobo Antunes, seu amigo com quem partilha a observância e a ternura pelas coisas simples, escreveu-lhe as letras de um álbum cujo título os poderia caracterizar: “Eu Que Me Comovo Por Tudo e Por Nada”. Foi essa comoção que fez Vitorino assumir-se como uma das grandes referências da nossa matriz mais popular – buscando na sua própria história outras histórias convergentes.
Os olhos requerem olhos
E os corações corações
E os meus requerem os teus
Em todas as ocasiões
Ouvir também: ‘Joana Rosa’ (1986). Uma morna cantada em português e traduzida para crioulo, com as duas versões a serem incluídas no mesmo maxi. A canção sorvia a noite africana de Lisboa – elegante ou marginal – que despontava. Tito Paris, músico neste disco, faria de ‘Joana Rosa’ também sua, sendo ainda hoje uma das suas canções mais icónicas.