Nos anos 90 do século passado, Cavaco Silva inaugurou a expressão “forças de bloqueio”. Referia-se, resumindo, a tudo o que pusesse em causa as suas decisões. No período da troika, a direita voltou a ser autoritária e, em vez de cumprir a Constituição da República Portuguesa (CRP), abriu uma guerra com o Tribunal Constitucional (TC) por este, por duas vezes, ter declarado inconstitucionais cortes de subsídios de Natal e de férias a partir de um valor baixo (tive grande responsabilidade nesses processos de fiscalização).
O TC passou a ser “força de bloqueio”. A teoria era simples: a culpa de qualquer austeridade extra seria do TC e não da maioria de direita que violava princípios elementares da Constituição, como a proporcionalidade, a dignidade da pessoa humana ou a proteção da confiança.
Foi um mau momento para a direita, que punha velhas garras autoritárias de fora. Mostrava sem vergonha que só aceitava decisões do TC se as mesmas lhe fossem favoráveis. Depois veio a “cantiga” de atacar a Constituição “socialista”, mas a cantiga era torpe, porque o TC invalidara (tal como agora) as normas em causa com base em princípios liberais básicos, como a proporcionalidade ou a dignidade da pessoa humana.
Os juízes foram pessoalmente atacados. As decisões teriam sido proferidas a pensar nas suas vidas. O atual juiz vice-presidente do TC defendeu a extinção do TC.
O mesmo se passa agora com a evidente inconstitucionalidade da lei dos estrangeiros. A direita foi avisada, toda a gente sabia o que ia suceder, o pedido de fiscalização do PR é tão denso como tantos outros - mas deu azo a debates ignorantes sobre o excesso do pedido: se não se deveria reduzir a apontar artigos e a excluir a causa de pedir (coisa jamais feita).
A decisão foi tomada por larga maioria e anda a direita a farejar votos de vencido como se os mesmos não fossem o resultado do normal funcionamento do TC.
O deputado João Almeida escreveu isto: “Presidente e TC não podem dar à esquerda a maioria que o povo lhe tirou”. O mesmo que saudava em voz muito alta as decisões bastante limitadas do TC sobre a lei da eutanásia, sempre com votos de vencido, alguns fortíssimos, e enaltecia a existência do TC contra a maioria mais do que absoluta, que aprovara a lei. Cinco vezes.
Não concordei com esses acórdãos, mas respeitei-os sempre e desenvolveu-se o que a democracia exige: um “diálogo” entre o Parlamento e o TC.
É que o TC foi inventado precisamente contra este pensamento de João Almeida. Está lá para defender a CRP seja qual for a maioria parlamentar. Não tem trela política. E tem, na sua composição, opiniões diferentes. O TC protege-nos de maiorias.
Há quem não tolere ser contrariado. Trump não gosta e tratou de mudar a composição do Supremo Tribunal para garantir a trela.
No jornal Observador há uma verborreia a atacar o TC, a falar em decisão muito dividida, que não foi, a isolar uma única declaração de voto e não a de vários que ainda teriam ido mais longe na pronúncia pela inconstitucionalidade. Longe vão os tempos em que Chega e João Almeida e o Observador, a propósito da lei de identidade de género, da lei da gestação de substituição, da lei da morte medicamente assistida, diziam: por um voto se perde, por um voto se ganha, assim é o TC. E bem. E fazíamos o nosso trabalho.
Temo que a vertigem a que chegamos com muito dinheiro a ajudar seja já a de não tolerar o sistema. Sim, o sistema. Não querem o TC, que elegeram em parte. Não querem o PR que elegeram. Não querem ouvir, recolher pareceres, querem fazer leis que têm nomes na praça: “lei dos estrangeiros”, sem quaisquer pressupostos reais e ai de quem se oponha à deriva.
Entretanto, sem quaisquer pressupostos reais, o governo ensaia uma tareia nos direitos laborais em pleno verão. Não estava no programa eleitoral. Não interessa. A extrema-direita manda. Pelo meio naufragaram imigrantes na nossa costa. Uma palavra de empatia? Nada: lei e ordem. E aproveitamento político.
Precisamos de ser oposição firme e ainda não sei qual o candidato a PR que fará da sua missão defender o nosso chão comum. Sem abstenções violentas. É uma urgência.