Ao mesmo tempo que decorre a exposição "Olhar Graça Morais", na galeria São Roque, em Lisboa, o documentário "Na Cabeça de uma Mulher está a História de uma Aldeia", realizado pela filha da pintora, Joana Morais, pode ser visto no mesmo espaço durante todos os sábados até 31 de dezembro. É um olhar biográfico e intimista feito a partir de longas conversas entre mãe e filha, com a aldeia transmontana de Vieiro como pano de fundo. Uma viagem às memórias da artista e à essência da sua obra.
Como é que surgiu a ideia para fazer este filme?
Este filme faz parte de um desafio lançado por mim, pela minha filha Joana e pelo meu marido, Pedro Caldeira Cabral, à associação das autarquias da Terra Quente para se fazer um levantamento musical e cinematográfico apoiado por uma série de obras minhas dedicadas à temática da região. Foi um trabalho de recolha e de investigação muito sensível e emotivo que pretendia recuperar uma memória. O resultado foi o documentário "Terra Quente - O Fim do Milénio" e também este "Na Cabeça de uma Mulher Está a História de uma Aldeia", um filme sobre mim, feito a pedido de algumas autarquias.
Porquê esse título?
Porque havia um conjunto de desenhos que eu tinha feito antes sobre as mulheres ("As Escolhidas"), um ciclo que assenta na observação dos penteados típicos daquelas mulheres, nos adornos, nos brinquinhos. Tudo o que tinha a ver com a cultura transmontana.
E com a aldeia de Vieiro em particular, a sua terra natal?
Com a minha terra sim, mas com a cultura em geral, que está hoje a sofrer grandes alterações. Dou-me agora conta de que os desenhos que fiz na década de 80 são uma espécie de pré-história do que estou a fazer agora em relação à mesma temática.
A relação com Vieiro esteve sempre muito presente na sua obra... Sempre. Na minha obra e em mim mesma. O filme prova-o muito bem. A Joana conseguiu - através de uma grande entrevista pontuada com imagens de quadros, desenhos e pessoas - mostrar o trabalho de uma vida e a relação forte que mantenho com aquele território geográfico.
Qual é o seu olhar hoje para a aldeia que a conheceu pequenina?
Acho que continuo com o olhar de criança, precisamente, um olhar de muito afeto, de muita surpresa e de muito maravilhamento. Ou seja, sinto-me encantada, não em relação ao país, mas em relação àquele pequeno lugar e à coragem daquelas pessoas em continuarem agarradas à terra e a acreditar, mesmo com tantas dificuldades. É que fazem aquilo por amor. É tudo muito enganoso, recebem alguns subsídios da União Europeia, plantam vinhas e oliveiras mas depois não conseguem concorrer com uma Espanha bem mais poderosa. Lutam na mesma. Comparo muito a atitude dessas pessoas com a minha atitude, com a minha luta enquanto artista num país que continua a ser periférico e de uma grande pelintrice, um país sem grande suporte económico para a maior parte das pessoas.
A ligação dos habitantes de Vieiro à terra é a mesma que a sua à tinta, à aguarela, ao carvão?
Sim. É a mesma mão a agarrar a terra. Eu podia já ter optado por fazer obras que tivessem mais a ver com a fotografia, com o vídeo, com os objetos, meios aparentemente mais rápidos de concretizar ideias. Mas não, prefiro a pintura e o desenho, que são suportes muito lentos, têm a ver com uma herança secular, é a minha forma de expressão. Quando tento fazer de outra maneira acabo por voltar a eles. Vim há dois dias de Trás-os-Montes, estive a pintar e estive encantada com a natureza. Este outono está maravilhoso. Como tem chovido pouco, as videiras estão vermelhas, amarelas... As árvores lindíssimas. É um reino extraordinário, o tal "reino maravilhoso", como lhe chamava Torga.
É inabalável essa sua relação à terra?
É. Eu continuo a ter uma grande necessidade de estar lá. Agora estive a pintar uma grande lebre. Tenho um irmão que é caçador e quando estamos na época da caça oferece-me perdizes, lebres... A lebre entra na minha pintura como no ciclo das estações do ano. Mas depois aquela lebre não é uma lebre realista. E porquê? Porque vou passear para o campo e para a montanha e aquelas cores enchem-me tanto que tenho que as transferir para o quadro que estou a pintar.
Tira-a da realidade e coloca-a num mundo de ficção?
Sim. Mas de qualquer forma isso só é possível acontecer porque eu estou lá na aldeia. E essa relação muito direta com o meio e com as pessoas com quem falo enriquece-me muito. Mas, claro, preciso ao mesmo tempo de fazer as minhas viagens, aqui em Lisboa, como lá fora, em Paris ou Londres.
Porquê a apresentação do documentário nesta mostra?
Porque estes quadros representam as várias fases do meu trabalho. São pinturas e desenhos que o Mário Roque foi adquirindo nos últimos anos em leilões, em galerias. É quase uma minirretrospetiva que vem de 1978 aos dias de hoje. Um encontro muito curioso que se relaciona bem com o documentário.
Pensa editar o filme?
Sim e acho que vamos conseguir. É um retrato muito íntimo entre mim e a pessoa que me documenta.
Há uma grande cumplicidade entre mãe e filha...
Por isso foi mais difícil fazê-lo. O que sinto é que há uma grande emoção neste filme que é tão forte que quando ele passa em exposições minhas as pessoas pedem sempre para o comprar.
Publicado na Revista Única de 27 de Novembro de 2010