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Catarina Portas: "Não quero tornar a vida um inferno"

As ideias fervilham na mente de Catarina Portas. Empresária de sucesso, tem obtido grandes lucros, mas preserva a qualidade de vida. O seu luxo são os livros. Carros, nem vê-los.

Entrevista de Cândida Santos Silva (www.expresso.pt)

Carrega um apelido de peso. Mas Catarina tem, como todos os Portas, deixado lastro. Aos 41 anos, é uma empresária de sucesso. A sua cabeça fervilha de ideias. Nasceu numa família privilegiada, mas nunca lhe facilitaram a vida. Quando queria algo, tinha de trabalhar. Saiu de casa aos 16 anos. Aos 18 investiu todo o dinheiro que tinha numa máquina de costura, para fazer chapéus, e trocou os estudos para escrever no "Independente", um semanário criado e dirigido pelo seu irmão Paulo Portas. A partir daí, nunca mais parou. Esteve na rádio e na televisão e escreveu livros. Depois criou a sua empresa, e hoje os seus negócios são reconhecidos e apreciados em todo o mundo. Só não conduz. Enquanto conversávamos aguardava uma boleia para ir de férias para o Algarve.

Como se sentiu ao ler na revista "Monocle", em 2009, que era uma das 20 figuras mundiais a precisar de um palco maior? Foi uma surpresa, embora a revista me tenha avisado antes, porque me pediram uma fotografia.

Como é que chegaram a si? O jornalista da "Monocle" que escreve sobre Portugal costuma vir cá todos os anos e telefona-me - como julgo que fará a outras pessoas - para fazer o "Guia das Melhores Cidades para Viver". Veio à minha loja várias vezes. Conhecia o negócio e até chegou a visitar os Quiosques de Refresco. Soube bem, como sabe bem qualquer outro reconhecimento.

Precisa de um palco maior? Tenho muita imaginação e, por isso, muitas ideias risos. Algumas até podem dar origem a projetos maiores. Tento controlar-me ao máximo, porque não quero tornar a minha vida um inferno. Preciso ter alguma calma, quero que as coisas corram bem. Se não tiver tempo para estar calmamente uma tarde a pensar ou a ler livros, ou a fazer as pesquisas que me apetece, também deixo de ter ideias. Tento que as lojas A Vida Portuguesa funcionem e tenham uma boa relação com as fábricas.

Que relação é essa? Gosto de passear nos arquivos e vender os seus produtos. Estou a organizar uma série de livros. Tenho um livro em estado avançado sobre 20 fábricas e produtos portugueses. Há outro semipreparado, com o Manuel Reis, sobre o Frágil.

Esse lado de escritora/jornalista não morreu? Não. Sou uma jornalista que não escreve e uma documentarista que não filma. Mas o olhar continua a ser esse, a que juntei uma intervenção comercial.

Tem duas lojas A Vida Portuguesa. Pensa expandir o negócio? Não quero multiplicar lojas. Quero que elas sejam especiais, invulgares e provem que não é preciso demolir interiores para fazer uma loja.

Recebe muitos pedidos de franchising? Muitos. Fazemos revenda para lojas e para museus e vendemos para Londres. Prefiro dar passos pequenos e ter controlo sobre o que faço. O meu intuito não é fazer dinheiro. Não gasto dinheiro em carros, nem sequer tenho carta, barcos, palácios... Claro que o sucesso é fundamental, porque sem isso os projetos não avançam. Mas não tenho necessidade de abrir lojas para fazer muito dinheiro.

Ampliou o negócio com a abertura dos Quiosques de Refresco. Tem três: no Largo Camões, na Praça das Flores e no Príncipe Real, em Lisboa. Faturaram mais de 700 mil euros em pouco mais de um ano. É uma nova frente? Foram um grande sucesso. Se lá vendesse cerveja, garanto-lhe que ganharia muito mais dinheiro. É um negócio que tem muitos custos. São 25 colaboradores, e há uma pessoa que só faz refrescos. Não procuramos soluções fáceis, mas concretizar boas ideias. Isso foi uma coisa que aprendi com uma pessoa que foi muito importante na minha vida, o Manuel Reis, que teve o Frágil, o Lux e é sócio do restaurante Bica do Sapato.

Diz que não tem carros, nem barcos, e que o dinheiro não é o objetivo... O que faz ao dinheiro? (risos) Não ganho muito, é preciso que as pessoas saibam isso. A minha vida mudou drasticamente desde que passei a andar com uma máquina de calcular na carteira. Uma das coisas que descobri é que o Estado leva a maior parte. Seria preferível que os governos criassem menos programas de apoio mas que cobrassem menos impostos para se poder reinvestir. Não tiro praticamente dinheiro nenhum da empresa. Tenho um salário e vivo dele. Para mim, é importante que a empresa tenha capital para crescer.

A sua empresa é unipessoal. No caso da loja de Lisboa é unipessoal, no Porto é em parceria com a Ach Brito, que tem 30 por cento do capital. Os Quiosques de Refresco são a meias com o João Regal.

Quais são os seus luxos? Comprar livros, muito material de pesquisa. Perco-me um bocadinho em antiquários e lojas de velharias.

E as viagens que gostava tanto de fazer? Ainda tem tempo para viajar? Gostaria de ter mais tempo. Estou a tentar fazer uma conta bancária de segurança, que nunca tive, dado que trabalhei sempre a recibos verdes. Sempre privilegiei a liberdade. Isso às vezes é bom, mas é difícil de gerir e de viver.

Pode relembrar a história do nascimento do seu negócio? Quando fui jornalista na "Marie Claire", aos 21 anos, fiz uma pesquisa sobre produtos portugueses. Doze anos depois - já tinha saído da "Marie Claire", já tinha feito televisão e enveredado pelo documentário e pelos livros - quis aprofundar essa pesquisa. Estava a trabalhar num livro sobre a vida quotidiana dos portugueses durante o século XX, que englobava o Estado Novo...

Foi quando se lembrou do negócio? Fui à procura dos tais produtos. Percebi que estavam a desaparecer. Não entendia porque é que os nossos produtos não eram estimados, como acontecia noutros países.

E avançou? Comecei a juntá-los, a organizá-los tematicamente. Investiguei um pouco da sua história, pois achei que se fossem vendidos com um livrinho que contasse o percurso teriam mais força. Mas a ideia nasceu também de outras coisas. Tive uma educação muito estrangeirada, vivi alguns anos lá fora. Fui com a minha mãe (Margarida Souza Lobo, urbanista) para Inglaterra e depois para Paris. Quando voltei, fui para o Liceu Francês. No fundo, conhecia mal Portugal, a sua história - que só estudei quando fiz o livro sobre Goa. Aos 21 comecei a ir para a Índia. Basicamente, voltei a olhar para o meu país com uma visão exterior e mais descomprometida, menos implicada. Aos 35 anos, quando comecei este projeto, deu-me uma vontade enorme de regressar a casa.

Mas não avançou logo para a loja. Não. De início, o objetivo era fazer revenda. Sugeri a ideia a alguns amigos, e houve uma amiga que se entusiasmou e resolveu avançar comigo. Pusemos as primeiras caixas à venda numa loja no Chiado, a dez dias do Natal. A SIC fez uma peça. Percebi que despertava interesse. Depois decidimos fazer as coisas à séria. Pedi ao Miguel Vieira Baptista e ao Ricardo Mealha que desenhassem umas caixas. Cada uma de nós meteu mil euros - e fomos investindo todo o dinheiro que fomos ganhando.

Até que encontraram aquele espaço no Chiado... Um achado. Isso foi depois. Passámos um ano a aperfeiçoar o produto. Fizemos um teste numa loja que o Miguel Reis tinha na Rua da Atalaia. Resultou. A loja só surge dois anos depois do início.

Quando a encontrou, decidiu mantê-la como era? A loja levou bastantes obras, mas não se notam. Tinha crateras de lixo. No início, nem percebi que tinha um balcão. A primeira coisa que pensei fazer foi limpar tudo e pintar as paredes. O Manuel Reis, que estava comigo, disso que aquilo era magnífico e que não devia pintar nada.

É uma mulher de esquerda, mas o primeiro nome que escolheu para a sua loja - A Casa Portuguesa - tinha muitas conotações com o salazarismo... Foi pura provocação. O nome tinha a ver com aquilo que queria, referia-se à vida doméstica em Portugal, e os objetos que procurava eram os de uso quotidiano. Gosto imenso de fado, mas não me revejo na letra da 'Casa Portuguesa', do pão e do vinho sobre a mesa... Quando a loja abriu, apareceram algumas pessoas muito saudosistas, e percebi que achavam que nós também o éramos. Por isso, quando me separei da minha sócia, decidi continuar o projeto sozinha, mas resolvi mudar de nome e escolhi A Vida Portuguesa. Pareceu-me menos conotado.

É irmã de dois políticos que estão em campos ideológicos opostos. Como lida com isso? Lidamos bem. É uma grande alegria que temos na família. Falam mais de política entre eles do que comigo...

Mesmo quando discutiam a interrupção voluntária da gravidez? Foi um assunto bastante complicado. Eu e o Miguel divergíamos completamente do Paulo. Esse foi o único momento de alguma fricção que tive com o meu irmão. Parecia-me tão injusta a legislação que existia, como mulher, que a luta me pareceu realmente importante.

E há momentos de convergência política? Muitos. Com o Paulo tenho convergido cada vez mais no que se refere a questões laborais.

Nenhum dos seus irmãos a desafiou para se filiar no partido a que pertence? (gargalhada sonora) Não. De todo. Além de gostarmos imenso uns dos outros, temos um enorme respeito por cada um, pela vida individual, pelas nossas opções, mesmo políticas.

Vota? Levo muito a sério o empenhamento cívico. Mas cívico não quer dizer político.

Alguma vez votou no Paulo ou no Miguel Portas? Não tem calhado votar neles risos. O que não quer dizer que não tenha acontecido. Sou uma independente. Tem a ver com momentos e circunstâncias. Empenhei-me nalgumas campanhas políticas de pessoas em que acreditava, como na primeira eleição de Jorge Sampaio para a Presidência, ou quando António Costa se candidatou à Câmara de Lisboa, ou nas últimas eleições, em que apoiei o PS. Houve algumas coisas do anterior Governo com as quais concordei, como a defesa dos trabalhadores por parte de um ministro, ou o recuo numa decisão tomada em relação ao Museu de Arte Popular...

Se há alguém que tem sempre na boca a defesa dos trabalhadores é Paulo Portas... Mas eu sempre fui uma pessoa de esquerda.

É provável que tenha votado mais vezes no Miguel que no Paulo... É provável que tenha votado mais vezes no PS risos.

Teve uma relação fácil com os seus irmãos? Sim. Fui viver com o Miguel aos 16 anos, quando saí de casa da minha mãe. Vivemos dois ou três anos na mesma casa. Mas depois fui trabalhar para o Paulo, no "Independente". Estabelecemos ali uma certa distância necessária e uma proximidade suficiente. Foi fascinante trabalhar com o Paulo.

Tal como os seus irmãos, passou pelo jornalismo. Começou no "Independente". Foi um convite do seu irmão? Não. Eu queria fazer História de Arte, e nos últimos anos do Liceu Francês decidi que talvez me interessasse ser modista de chapéus. Sabia que seria a última modista de chapéus de alta-costura em Portugal e que teria alguma hipótese de sobrevivência. Fui aprender com as duas últimas modistas que existiam em Lisboa. Ao mesmo tempo, o meu irmão estava a lançar um jornal, e o meu namorado da altura, o Jorge Colombo, era o diretor gráfico desse jornal. Passava lá o tempo todo. Comecei a dar umas ideias, e a dada altura o Paulo disse-me para fazer eu. Sempre tive facilidade na escrita. Comecei a ler aos 6 anos e até aos 16 nunca parei. Ganhei desenvoltura na escrita.

Mas, quando começou a escrever para "O Independente", a escrita não lhe surgiu assim tão simples. Nunca decidi investir na escrita, porque sempre me pareceu fácil. Quando tive a primeira encomenda de um texto, sofri imenso. Foi muito difícil. Foi difícil durante vários anos. Era autodidata. Punha a fasquia altíssima, trabalhava dias e dias nos textos. Mas ainda ganhei alguns prémios.

Deixar os estudos numa família como a sua para ser modista de chapéus foi um ato de quê? Foi um ato de rebeldia risos.

O que lhe disseram os seus pais? Não foi pacífico. Mas empenhei-me, tentei aprender... Consegui explicar à minha família que aquilo me interessava. Tiveram a inteligência de me dar essa abertura. A minha mãe teve durante muitos anos a grande mágoa de eu não ter feito um curso.

O seu avô não achou grande piada a essa escolha dos chapéus... Pelo contrário. Ele já estava velhinho. Expliquei-lhe que queria fazer aquela opção, e ele disse-me que, se eu acreditasse e fizesse bem, avançasse.

Passava o Natal com os seus irmãos e o seu pai em Vila Viçosa. Num desses anos, o seu avô decidiu dar a cada um dos netos um cheque de 50 contos. 250 euros. Era muito dinheiro na altura. O que é que lhe fez? Todos os anos recebíamos um envelope com dois contos 10 euros, e achávamos maravilhoso. Nesse ano, o meu avô Leopoldo, que já estava muito velhinho, achou que estávamos todos com vontade de fazer coisas e ofereceu-nos 50 contos. Era imenso dinheiro. Eu comprei uma máquina semiprofissional para fazer chapéus.

Gostava muito desse seu avô... Quem era o avô Leopoldo? Era engenheiro de minas, vivia em Vila Viçosa. Levava-me às pedreiras. Falava-me sobre os mármores e explicava-me tudo, como se eu fosse crescida.

Era latifundiário? Não. A minha avó Bina é que vinha de uma família de latifundiários.

Mas, ideologicamente, estava ligado ao Estado Novo. Sim. Houve muita gente que em 1933 - quando Salazar assumiu o Governo, depois de vários anos de instabilidade - suspirou de alívio. O meu avô tinha grande sentido de humanidade. Tenho a certeza que não concordava com perseguições políticas e coisas que aconteceram mais tarde no regime.

Quando estavam em Vila Viçosa, tinham grandes discussões políticas com ele? Eram férias maravilhosas. Fazíamos jornais, jogávamos à canastra até às três da manhã com as minhas tias-avós... Mas também havia imensa discussão política. Todos tinham opiniões muito mais progressistas do que ele. O meu pai era católico progressista, depois cortou com a Igreja - na altura em que se separou e foi viver com a minha mãe -, por não se poder divorciar, porque existia a Concordata.

A Catarina é uma pessoa fora da norma. Nasce fora do casamento, não é batizada, nos escuteiros era a única que não rezava... Mas tudo isso foi ótimo. Aprendi que não existia uma única norma, mas muitas formas de viver. O facto de ler imenso deu-me uma grande bagagem. Agora, olhando para trás, posso dizer que aos 17 anos já sabia muito.

Mesmo que esse conhecimento fosse sobretudo livresco... Era muito livresco. Aos 16 anos comecei a namorar e a viver fora dos livros. E constatei que o mundo real era muito diferente do dos livros. Achava as pessoas muito inconsequentes. Nos livros eram muito mais elaboradas e consequentes risos.

Houve uma altura da sua vida em que pegou numa mala, enfiou lá 30 quilos de livros e foi ler para longe. Para onde? Foi a seguir à televisão, ao programa do sofá vermelho. Fui para uma ilha na Tailândia, estendi-me numa cama de rede, numa praia meio selvagem, onde li um livro por dia. Acredito na frase do Jorge Luís Borges que diz que os livros são uma hipótese de felicidade.

Como era e como é a relação com o seu pai, o arquiteto Nuno Portas? Sempre foi excelente. A partir dos 5 anos deixámos de viver juntos. Ele foi viver para Madrid e depois para o Porto, mas esteve presente quando foi preciso. Ensinou-me imensas coisas.

Isso é contraditório com uma frase que já disse: "O meu pai nunca foi um homem muito presente, mas apesar disso não tive falta de pai." Quer explicar? Ele esteve sempre nos momentos importantes. Quando vivia em Madrid poderia estar umas semanas sem o ver, mas depois ia de férias com ele.

Têm uma relação entre iguais? Não, de todo. É uma relação entre pessoas que se respeitam. O pai sempre nos deu grande liberdade e respeitou as nossas escolhas. Sempre tentou entender as coisas em vez de as condenar. Dava-nos muita responsabilidade. É uma pessoa muito apaixonada. E transmitiu-nos essa paixão pelo cinema, pela arquitetura, pelo urbanismo. Sempre gostou de pensar e comunicar. Passou-nos isso também.

Acha que a imagem que as pessoas têm agora de si é verdadeira ou continuam a julgá-la arrogante, como no tempo em que fez televisão? Durante muito tempo, as pessoas que não me conheciam achavam-me absolutamente arrogante. Tive durante anos um problema de timidez patológico risos. Foi a televisão que me ajudou a quebrar, tinha de enfrentar as câmaras e o mundo.

Mas é uma pessoa muito social, embora diga que não vive sem o seu espaço e que precisa da solidão. É verdade. Preciso de estar sozinha. Pode ser a passear, a viajar... Gosto de momentos de silêncio e, às vezes, encontro-os simplesmente em casa.

Tem 41 anos, nunca casou nem tem filhos... Não. Mas também nunca falei publicamente da minha vida sentimental e não vou começar hoje.

Mas é uma pessoa de paixões arrebatadas. Sou arrebatada por pessoas, ideias, projetos.

Nas relações, vai de cabeça. Não pensa nas consequências? Vou em frente. Mas às vezes bato com a cabeça na parede risos.

Não tem carro, nem conduz. Como é que uma mulher independente vive sem carro? Não ter carro é o cúmulo da independência.

Mas depois fica dependente de uma boleia para ir para o Algarve de férias... Também é verdade. Terei de ir tirar a carta brevemente (gargalhada).

Publicado na Revista Única de 21 de Agosto de 2010