Coronavírus

Políticos devem ter prioridade nas vacinas? Morte de ministro colombiano sublinha a importância da questão

O argumento de que é necessário manter instituições vitais a funcionar, bem como dar exemplos públicos de confiança nas vacinas, choca com a indignação face a aparente situações injustificadas de privilégio

CHENEY ORR/REUTERS

Esta terça-feira foi anunciada a morte do ministro da Defesa colombiano. Responsável pela componente militar da luta contra o tráfico de droga, Carlos Holmes Trujillo, que tinha contraído covid-19 há semanas, morreu aos 69 anos, vítima de uma pneumonia.

Num país de quase cinquenta milhões de habitantes e onde os casos registados do vírus já ultrapassam dois milhões, com 52.128 mortes, Trujillo é o último líder de alto perfil a ser atingido pelo vírus. Outro é o dirigente da Organização Nacional Indígena, Luis Fernando Arias, que se encontra gravemente doente.

A política é uma atividade que vive normalmente de intenso contacto com muitas pessoas, em público e em privado. Assim, não surpreende a quantidade de políticos que têm sido contaminados ao longo dos últimos meses. Ao famoso trio - Trump, Bolsonaro e Boris Johnson - juntou-se agora o Presidente mexicano Andrés López Obrador. Com um ataque cardíaco e uma longa história de tabagismo, ele está num grupo de risco, embora os prognósticos sejam bons, pois os políticos tendem a beneficiar de um nível de assistência médica inacessível à maioria dos cidadãos. Tal como Trump e Bolsonaro (e Johnson, ao início), Obrador tem sido cético em relação à utilização de máscaras e aos confinamentos, e não se sabe que efeitos a experiência pessoal poderá vir a ter sobre o seu otimismo.

Políticos em muitos outros países - incluindo Portugal, onde só ministros já vão em meia-dúzia - têm sido infetados pelo coronavírus. França (o Presidente Macron), Alemanha (o ministro da saúde Jens Spahn), Eslováquia (o primeiro-ministro Ifor Matovic), Polónia (o Presidente Duda), Bulgária (o primeiro-ministro Boris Borisov), Moldávia (o então primeiro-ministro Ion Chicu), Croácia, Arménia, Argélia, Guatemala, Honduras, Guiné-Bissau... No Zimbabwe quatro ministros morreram recentemente, e no Sri Lanka a própria ministra da Saúde, Pavithra Wanniarachchi, que tinha promovido uma poção mágica herbal como forma de combater o coronavírus, deu positivo num teste sexta-feira passada. O representante da União Europeia nas negociações do Brexit, Michel Barnier, também não escapou, tal como o ex- primeiro-ministro italiano Silvio Berlusconi, atualmente com 84 anos.

Ambos superaram a doença, ao contrário de Valery Giscard D'Estaing, antigo Presidente francês, que faleceu de covid-19 aos 94 anos.

Confiança ou privilégio?

Como em tudo o que envolve política, a questão da prioridade na vacinação está longe de ser pacífica. Em Espanha, ainda há dias o diário "El País" notava a polémica em torno das "centenas de pessoas, incluindo líderes políticos, médicos reformados e familiares de trabalhadores de saúde, que receberam a vacina embora não integrem o primeiro grupo prioritário". Também aqui se acusam os políticos de não darem o exemplo, "saltando a fila" e ultrapassando categorias de pessoas incontestavelmente prioritárias - trabalhadores do sistema de saúde, residentes e funcionários de lares, outras pessoas com especiais vulnerabilidades.

Polémicas semelhantes surgiram em países como os Estados Unidos. A semana passada, o "Washington Post" contava como uma médica de um hospital em Washington D.C., antes da tomada de posse, tinha "visto com frustração uma data de líderes do Governo a receber inoculações - incluindo legisladores que recusavam usar máscaras e membros da administração Trump que minimizavam a pandemia - enquanto ela e os seus colegas foram inicialmente deixados desprotegidos por o seu hospital ter recebido menos de 1000 doses desse recurso escasso".

Nessa altura já estava decidido que políticos e certos altos funcionários constariam entre os primeiros a ser vacinados. Vários deles, segundo o "Post", fizeram mesmo questão de exibir publicamente as suas inoculações, não como exemplo de privilégio mas como exemplo de confiança nas vacinas - outro recurso por vezes escasso, mas que não é menos essencial do que as vacinas propriamente ditas.

Perante esse argumento, a médica citada no "Post" contrapunha que o que realmente daria confiança ao público seria ver os médicos e os enfermeiros vacinados. Alguns políticos concordaram. A representante democrata Ilhan Omar disse mesmo que dar prioridade a políticos "jovens e saudáveis" seria "vergonhoso", e recusou ser vacinada para já, como fizeram muitos dos seus colegas.

Alterações na lista prejudicam confiança

Com pelo menos 270 casos de infeção no Congresso, dos quais 50 de representantes eleitos, a urgência de proteger uma instituição vital da democracia é manifesta. Onde a indignação se tem focado com especial ênfase é nos cônjuges dos legisladores. Porque hão de a mulher do presidente Joe Biden e o marido da vice-presidente Kamala Harris ter prioridade sobre enfermeiros e pessoas gravemente doentes? O argumento de promover confiança aqui não vale tanto, pois segundo o site da KHN, ligado à prestigiada Kaiser Family Foundation, "de qualquer maneira o público não confia assim tanto nos políticos, pelo que inocular celebridades, líderes religiosos ou figuras do desporto faria mais para incrementar a confiança na vacina".

Alterações sucessivas na lista de prioridades são uma forma particularmente eficaz de destruir a confiança do público na equidade do sistema de inoculações. Em Portugal, como noutros países, a decisão inicial de não dar prioridade aos políticos foi revista após os casos recentes de infeção.

Uma das vozes que o defendeu foi o constitucionalista Vital Moreira, lamentando no seu blogue a possibilidade de que, em semestre de presidência portuguesa do Conselho da UE, "a multiplicação de ministros infetados" crie receios entre os membros do Conselho e da Comissão Europeia. Tudo por causa da "demagogia" e do "populismo nacional" que usa os políticos como "bodes expiatórios".

Com a União Europeia atrasada no seu programa de vacinação se comparada com o Reino Unido ou mesmo com os EUA, este género de polémicas promete continuar. Com cada novo caso noticiado de aparente manha para passar à frente (e tem havido vários) a atiçar a indignação de populações que já estão bastante nervosas com uma crise económica e sanitária sem precedentes.