Marcelo Rebelo de Sousa começa esta terça-feira a ouvir os partidos sobre o Orçamento de Estado e as medidas de combate à pandemia, com o Governo entalado entre duas urgências: estancar a rutura do Serviço Nacional de Saúde, que já está no vermelho (o que pode exigir confinamentos mais drásticos), e evitar que a atividade económica seja ainda mais estrangulada (o que, em sentido contrário, desaconselha novos lockdown).
Confrontado com este dilema e muito pressionado pelo sector da Saúde para avançar com medidas mais musculadas de confinamento por forma a evitar que, dentro de dias, o país fique sem resposta ao nível dos cuidados intensivos, António Costa recebeu esta segunda-feira duas notícias que o empurram para ter, sobretudo, muita cautela com a economia e com as contas públicas.
Uma veio de Bruxelas, onde a tão falada e prometida "bazuca" europeia de 26 mil milhões, a que somam cerca de 30 mil milhões do próximo Orçamento Comunitário, ficou congelada após os líderes da Hungria e da Polónia terem cumprido a ameaça de bloquearem a aprovação - quer do orçamento, quer do chamado fundo de recuperação.
Sem luz verde unânime dos Estados da União Europeia, a Comissão não terá capacidade para organizar a operação de emissão de dívida com que se dispôs a constituir o fundo de recuperação da crise. O que, trocado por miudos, significa para já um adiamento no processo sem que haja certezas sobre quando começam os milhões a chegar a Portugal.
Para já têm de ser os líderes europeus, cada vez mais pressionados pela segunda vaga da pandemia, a resolver o imbróglio - e os chefes do Estado e de governo da UE reúnem-se na quinta-feira para discutir a situação.
Mas de Lisboa António Costa também não recebeu notícias fáceis - pelo contrário: foi aconselhado a resistir à tentação de, enquanto espera pela bazuca, despejar maciçamente dinheiro na gestão da crise.
O governador do Banco de Portugal e ex-ministro das Finanças de António Costa, Mário Centeno, escolheu precisamente a fase final da negociação entre o Governo e os partidos à sua esquerda com vista à viabilização do próximo Orçamento do Estado para deixar um sério aviso com cheirinho a austeridade. "Os níveis de dívida tornam proibitivas intervenções maciças nos apoios" às famílias e à economia, afirmou Centeno numa conferência do Banco de Portugal, uma semana depois de, numa outra conferência com economistas, ter deixado o mesmo recado.
"Perante uma crise que não é estrutural, não devemos alterar as características fundamentais do nosso sistema de apoio social e económico", avisou, deixando claro que as medidas "anticrise devem atuar nas margens" e ter carácter "temporário". Ou seja, nada de ceder a tentações de aumentos estruturais na despesa pública.
Marcelo Rebelo de Sousa já defendeu publicamente que "se há ano em que se pode facilitar no défice é este", aconselhando mesmo o Governo a aproveitar o próximo Orçamento do Estado para aumentar quanto for necessário as dotações para o sector da Saúde. Mas a grelha de trabalho das Finanças - agora nas mãos de João Leão mas, como se suspeitava e agora se confirma, muito em linha com o ex-ministro e agora governador - não passa por deixar esquecer nem os riscos do apetite dos mercados face a países muito endividados, nem as regras da zona euro que podem reentrar em cena mais cedo do que convinha.
Nas previsões económicas que levou ao Conselho de Estado em finais de julho, o primeiro-ministro apontou já para 2022 um regresso à regra dos défices inferiores a 3%, prevendo para Portugal 2,8% do PIB. E assim sinalizou determinação em manter-se em linha com as 'boas práticas' dos 'bons alunos' do euro. Centeno veio agora carregar na tecla e pôr pressão na questão da dívida para lembrar que nem a pandemia nem o seu âmbito global permitem que se facilite.
Neste contexto, Marcelo quererá, a partir desta terça-feira, avaliar as condições de viabilização do próximo OE. Mas não sendo essa a questão que agora mais o preocupa, por confiar que o PCP acabará por ajudar António Costa, o Presidente também quer avaliar que consenso existe entre os partidos caso seja necessário apertar a malha dos confinamentos para salvar o SNS de uma rutura que se teme iminente. Ainda que isso atinja inevitavelmente a já muito afetada atividade económica.
Como sobreviverá o Governo ao próximo ano caso a "bazuca" europeia tarde a surtir efeito e se as esquerdas falharem no apoio ao OE para 2022 (quando Costa já quer um défice abaixo dos 3%), essa sim é a questão que mais preocupa o Presidente da República, que nessa altura espera estar já a cumprir um segundo mandato.
A previsão no palácio de Belém é que no ano que vem, ainda que dependendo das sequelas que a crise pandémica, económica e social provoque no eleitorado e na imagem do Governo, há fortes probabilidades de se precipitar uma crise política. E se nem as demoras da Europa nem os austeros avisos de Centeno são propriamente novidade, a verdade é que só complicam a perceção que o primeiro-ministro otimista tentará continuar a passar para a opinião pública.
O PSD joga no desgaste do Executivo. As esquerdas vão avaliar nas presidenciais de janeiro como passam no primeiro teste eleitoral pós-covid. E Marcelo vai aquecer os motores para um segundo mandato instável.
Se, como disse António Costa na sexta-feira, a situação sanitária "é muito grave", geri-la sem sufocar mais a economia e evitando que os protestos de rua alastrem no país com exigências de mais apoios (a restauração pede a suspensão do IVA e da TSU) é, para o primeiro-ministro, uma verdadeira quadratura do círculo. Esta quinta-feira, o estado de emergência será renovado. Apertando ou não a malha dos confinamentos, eis a questão.