Todos os alertas estão dados de que, a manter-se o atual número de novas infeções e de internamentos, os Cuidados Intensivos dos hospitais portugueses poderão não conseguir atender a todos os doentes que deles necessitem. E, numa situação de escassez de recursos, os candidatos terão de ser avaliados caso a caso e a aceitação será reservada a que tiver maiores hipóteses de sobrevivência.
Nesta equação, são vários os fatores a ter em conta e nem sempre a idade é o aspeto determinante. Nem a ordem de chegada do doente. Demência e doenças crónicas altamente debilitantes são critérios capazes de afastar uma pessoa da Unidade de Cuidados Intensivos. A Ordem dos Médicos, desde o início da pandemia, mostrou-se preocupada com a necessidade de clarificar o processo de decisão, tendo elaborado um documento com recomendações aos profissionais de Saúde, que constam no parecer do Conselho Nacional de Ética e Deontologia. O acentuado aumento dos números de infeções e de internamentos em Portugal trouxe de volta o tema à discussão.
O documento, datado de 4 de abril, foi elaborado pelo conselho no início da epidemia, não tendo sido publicado na altura face à melhoria da situação epidemiológica e diminuição da pressão sobre os hospitais, segundo afirma este sábado ao jornal "SOL", Manuel Mendes Silva, presidente do Conselho Nacional de Ética e Deontologia Médicas da Ordem dos Médicos. Na origem do adiamento da publicação esteve o receio de que um texto deste tipo pudesse causar uma situação de alarme na população, explica o responsável.
Mas, com vários países a enfrentar uma segunda onda de casos de covid-19 superior à primeira fase e com os hospitais de novo sob pressão, o documento voltou a ser referido, devendo mesmo ser publicado este fim de semana, de forma a reforçar os «princípios gerais a acautelar na conduta médica».
No parecer pode ler-se que "não se trata de tomar decisões de valor, mas de reservar os recursos que podem tornar-se extremamente escassos para aqueles que têm, antes do mais, maior probabilidade de sobrevivência após o tratamento". E também que "na circunstância de usando critérios clínicos termos mais candidatos (com condições médicas e necessidades equiparáveis) do que os meios disponíveis, deverá ser privilegiando o prognóstico vital seguindo o princípio da proporcionalidade. Salvar mais vidas e mais anos de vida é consistente, tanto com perspetivas éticas utilitárias que enfatizam os resultados baseados no bem comum, quanto, com visões não-utilitárias, que prevalecem nos médicos portugueses, que enfatizam o valor único de cada vida humana". Ou se,a de forma mais clara: "Os doentes onde o benefício é mínimo e improvável por doença avançada ou terminal não devem, tal como em situações de não emergência, fazer terapia intensiva."
E, "no caso de os doentes que morram numa situação de total ausência ou restrição de visitas, deverá ser garantida, sempre que possível, a possibilidade de se despedir, ainda que através do telefone, dos seus familiares. Os familiares de todos os doentes que morram durante este período deverão receber apoio psicológico e/ou espiritual adequados à sua necessidade e vontade".
Médicos prioritários
Ainda em março, também o Centro Académico de Medicina de Lisboa, instituição em que participam a Faculdade de Medicina de Lisboa, o Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte e o Instituto de Medicina Molecular, redigiu um documento intitulado "Assistência no decurso da pandemia covid-19 - aspetos éticos", em que se abordam as formas de reagir dos especialistas quando confrontados com situações de desastre. Nestas alturas, pode ler-se, surgem problemas de "compatibilização do volume de doentes e das capacidades logísticas instaladas". O que, de acordo com o texto a que o Expresso teve acesso, "pode levantar aos profissionais de Saúde problemas éticos aos quais não são habitualmente sujeitos".
Assim, para ajudar no processo de decisão, alguns princípios estão claramente assumidos no documento, que vai buscar inspiração em bibliografia internacional da área: o objetivo é salvar o maior número possível de vidas, sobretudo o máximo de vidas com melhores prognóstico e com maior capacidade de ajudar a sociedade. Por isso, pessoas que são participantes em ensaios clínicos e profissionais de saúde podem ter prioridade por poderem beneficiar a sociedade no futuro com a sua sobrevivência. A seleção aleatória só deve ser utilizada quando em causa estiverem doentes com o mesmo tipo de prognóstico. E a ordem de chegada ao serviço não deve nunca ser utilizada como um critério para estabelecer a prioridade de acesso aos Cuidados Intensivos.
Espanha pragmática
A Sociedade Espanhola de Medicina Intensiva, Crítica e de Unidades Coronárias elaborou também um documento intitulado "Recomendações éticas para a tomada de decisões numa situação excepcional da crise pela pandemia de covid-19 nas unidades de Cuidados Intensivos", em que é estabelecido de forma muito clara que critérios devem ser tidos em conta no momento da decisão de ingresso de um doente crítico.
Começa por explicar que uma pandemia global, como a covid-19, pode "sobrecarregar a capacidade de instalações ambulatoriais, departamentos de emergência, hospitais e serviços de medicina intensiva (ICS), com impacto nos recursos disponíveis, ambos ao nível de estruturas, equipamentos e profissionais, com graves consequências sobre os resultados dos pacientes, suas famílias, seus próprios profissionais de saúde e sociedade em geral".
Assim, pode ler-se no documento, tratando-se de uma situação de catástrofe, as decisões devem ser tomadas "a partir de uma estrutura de planeamento baseada em critérios científicos sólidos, sobre princípios éticos, sobre o estado de Direito, sobre a importância da participação provedor e comunidade, e etapas para permitir a entrega serviços médicos equitativos e justos para quem deles precisa".
E explica mesmo que "em caso de desproporção entre a procura e as possibilidades, é lícito estabelecer uma triagem de admissão entre os doentes, com base no princípio de justiça distributiva, evitando seguir o critério usual de 'o primeiro em chegar é o primeiro a receber ajuda '". E que os protocolos de triagem consistem num sistema de regras aplicadas em situações de recursos escassos para ajudar a tomar "decisões justas e transparentes". Nestes casos, pode ler-se, "a proteção do pessoal de saúde é uma prioridade para evitar a redução do recursos necessários para cuidar de doentes durante a pandemia".
Assim, a primeira prioridade deve ser dada aos "doentes críticos e instáveis, que precisam de monitoramento e tratamento intensivos que não podem ser fornecidos fora das Unidades de Cuidados Intensivos, como ventilação mecânica invasiva ou depuração renal contínua". Em segundo lugar vêm "doentes que requerem monitoramento intensivo e podem necessitar de intervenções imediatas". Não estando sob ventiladoção invasiva, necessitam de terapia de oxigênio.
Em terceiro lugar entrariam os doentes "instáveis e críticos, que têm pouca chance de recuperar-se da doença de origem". Podem receber tratamento intensivo para aliviar sua doença aguda, mas também podem ser estabelecidos limites terapêuticos, como não entubar e/ou não serem alvo de tentativas de ressuscitamento.
Finalmente, em último lugar vêm os doentes cujo ingresso em Cuidados Intensivos não é indicado devido a "um benefício mínimo ou improvável devido à doença". Pacientes cuja doença terminal e irreversível tornem as suas mortes iminentes.
De forma resumida, o que se defende no documento espanhol é que o ingresso nos Cuidados Intensivos deve ocorrer "sempre que houver um grande benefício esperado e reversibilidade" na situação do doente. Os critérios devem ser rígidos para admissão com base na "maximização do benefício do bem comum". Quando não se verificarem as melhoras esperadas, a equipa médica deve avançar com medidas paliativas. O texto sublinha ainda que "qualquer doente com deficiência cognitiva, demência ou outro doenças degenerativas, não deveriam ser subsidiários de ventilação mecânica invasiva".